28/03/2010

Auto da Barca do Inferno

O Auto da Barca do Inferno

O teatro vicentino é, essencialmente, um teatro de tipos.

O tipo não é uma personagem individual e bem caracterizada mas uma figura que representa as qualidades e os defeitos da classe, da profissão ou até do estrato social a que pertence. Para que o público pudesse identificá-lo facilmente, apresentava-se com elementos distintivos, que tanto podia ser um objeto, um animal, ou até mesmo uma pessoa que vinha em sua companhia.

No Auto da Barca do Inferno, tem o Fidalgo que vem seguido de um criado, que lhe segura a cauda do manto e carrega uma cadeira; o Onzeneiro traz pendente da cinta uma enorme bolsa, que ocupa quase todo o navio; o Sapateiro aparece-nos carregado de formas e com um avental sobre a sua roupa; o Frade surge-nos com uma moça pela mão, cantarolando e bailando, envergando, sob o hábito, a armadura de esgrimista, traz consigo também um pequeno escudo (broquel), uma espada e um capacete (casco) debaixo do capuz (capelo); a Alcoviteira vem seguida de um grupo de moças que ela explorou, entregando-as à prostituição, transporta consigo seiscentos virgos postiços, jóias e vestidos roubados, uma casa movediça, um estrado de cortiça e dez coxins (almofadas); o Judeu sobrevém com um bode às costas, animal ligado aos sacrifícios da religião judaica; o Corregedor, apoiado numa vara, transporta uma resma de processos; o Procurador não abandona os seus livros jurídicos e o Enforcado pisa o estrado com um baraço ao pescoço. Os Cavaleiros da Ordem de Cristo trazem o hábito com a cruz de Cristo que os identifica.

Na Barca do Inferno, temos alguns figurantes que funcionam como elementos distintivos e caracterizadores: o pajem que acaudata o Fidalgo, a moça Florença que o Frade dominicano traz pela mão e o grupo de moças que escolta a Alcoviteira. Todas estas figuras são mudas, mas só uma delas, a moça Florença, entra para a barca do Inferno, participando assim do argumento. As outras desaparecem, no fim das respectivas cenas, participando apenas da ação. Estes figurantes, tanto a moça Florença (figurante de 1º plano) como todas as outras (figurantes de 2º plano) desempenham uma função caracterizadora e distintiva.

A linguagem também funciona como elemento distintivo e caracterizador de certos tipos. A linguagem do Parvo é desbragada, desarticulada e ilógica, com certa propensão para o emprego de símbolos fálicos e de expressões ou vocábulos escatológicos. O Corregedor e o Procurador expressam-se num latim jurídico tão adulterado que, por vezes, se confunde com o latim macarrónico. O Diabo imita-os, exprimindo-se, quando com eles fala, num latinório semelhante.

Algumas vezes, o tipo é rotulado por um nome próprio que não o individualiza mas apenas o nomeia. É o caso do fidalgo D. Henrique; do parvo Joane; do sapateiro João Antão; de Frei Babriel e da sua amante Florença; do judeu Semah Fará e da alcoviteira Brízida Vaz. Não devemos confundir estes nomes com as alusões a pessoas do tempo, historicamente identificáveis, como é o caso do carcereiro Afonso Valente, do ex-tesoureiro Garcia Moniz e do escrivão Pêro de Lisboa. O nome do Parvo é incaracterístico, porque Joane era o nome que costumava dar-se, no século XVI, aos pobres de espírito.

O Corregedor e o Procurador

É habitual considerar-se a entrada do Corregedor e do Procurador como fazendo parte de uma só cena, na medida em que ambas as personagens pertencem ao mesmo grupo socioprofissional e percorrem o espaço cénico simultaneamente.

Esta cena forma um amplo quadro da justiça humana, que Gil Vicente opõe à justiça divina. O objectivo de Gil Vicente assenta em parâmetros que têm a ver com a corrupção da magistratura e com a antítese entre a justiça divina e a justiça humana a que bem se pode chamar (in)justiça.

O Corregedor aparece-nos carregado de processos (feitos) e com uma vara na mão. Pouco depois, junta-se-lhe o Procurador, que vem abarrotado de livros. Ambos dialogam com o Diabo em latim jurídico deturpado, que tem função cómica (cómico de linguagem) e também caracterizadora.

A principal e quase única acusação que o Diabo lança ao Corregedor é a de não ter sido imparcial nas suas sentenças, deixando-se corromper por dádivas recebidas até dos Judeus. Parece que uma das prendas mais generalizadas era a perdiz, o que originou a exclamação do Diabo:”Oh amador de perdiz…”. O Diabo acusa-o também de malícia, corrupção e exploração de lavradores ingénuos. O Corregedor não nega esta acusação e limita-se a atirar as culpas para cima da mulher. Era ela quem recebia as prendas e, por isso, ele sentia-se isento desse pecado.

Tal como na cena do Sapateiro também Gil Vicente foca a confissão das almas pouco antes de falecerem. O problema é resolvido aqui deste modo: o Corregedor confessou-se, mas ocultou todos os seus roubos, enquanto o Procurador nem sequer se confessou, porque não se apercebeu que havia chegado a sua hora derradeira. Está aqui, mais uma vez, presente a crítica a uma falsa prática religiosa, que limita ao cumprimento dos atos externos do culto.

Temos nesta cena dois pormenores a destacar ainda: o neologismo descorregedor, com forte carácter satírico (o Diabo pretende apontar a falta de imparcialidade nos julgamentos feitos pelo Corregedor) e o diálogo final entre o Corregedor e a Alcoviteira (o Corregedor julgou-a e condenou-a em vida). A Alcoviteira acusa o Corregedor de estar sempre a mandar persegui-la na vida terrena (a justiça castigava as alcoviteiras, mandando-as açoitar); agora, pelo menos está em paz. Agora o juiz do tribunal terreno torna-se réu no tribunal divino, onde é julgado e condenado.

Devemos ainda ter em atenção a pergunta formulada pelo Corregedor, inquirindo se não existia ali “meirinho do mar”. Trata-se de um hábito adquirido no exercício da profissão que o tipo não abandona mesmo depois da morte. Por outro lado, o Corregedor pretende ter um julgamento terreno, com advogados e juízes de carne e osso, a justiça humana com certeza que lhe seria mais favorável.

Mais uma vez o Parvo se confunde com o Diabo, quando insulta e injuria o Corregedor e o Procurador. O Parvo acusa-os de terem roubado na vida terrena, de terem sido desonestos e de desrespeitarem a Igreja. O Anjo condena-os.

Características da obra:

O “Auto da Barca do Inferno”, ao que tudo indica, foi apresentado pela primeira vez em 1517 na câmara da rainha D. Maria de Castela, que estava enferma. Esse Auto é classificado pelo próprio autor como um “auto de moralidade”.

Espaço: Tem como cenário um porto imaginário, onde estão ancoradas duas barcas: uma como destino o paraíso, tem como comandante um anjo; a outra, com destino ao inferno, tem como comandante o diabo, que traz consigo um companheiro.

Tempo: Com relação a tempo, pode-se dizer que é psicológico, uma vez que todos os personagens estão mortos, perdendo-se assim a noção do tempo.

Linguagem: Redondilhas maiores (sete sílabas poéticas), linguagem coloquial para caracterizar a posição social dos personagens.

Estrutura: A peça é composta de apenas um ato dividido pelas falas do anjo e do diabo.

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