14/06/2010

कार्तास पोर्तुगुएसस

Cartas de uma Freira Portuguesa

Soror Mariana Alcoforado

PRIMEIRA

Considera, meu amor, a que ponto chegou a tua imprevidência. Desgraçado!, foste enganado e enganaste-me com falsas esperanças. Uma paixão de que esperaste tanto prazer não é agora mais que desespero mortal, só comparável à crueldade da ausência que o causa. Há-de então este afastamento, para o qual a minha dor, por mais subtil que seja, não encontrou nome bastante lamentável, privar-me para sempre de me debruçar nuns olhos onde já vi tanto amor, que despertavam em mim emoções que me enchiam de alegria, que bastavam para meu contentamento e valiam, enfim, tudo quanto há? Ai!, os meus estão privados da única luz que os alumiava, só lágrimas lhes restam, e chorar é o único uso que faço deles, desde que soube que te havias decidido a um afastamento tão insuportável que me matará em pouco tempo.

Parece-me, no entanto, que até ao sofrimento, de que és a única causa, já vou tendo afeição. Mal te vi a minha vida foi tua, e chego a ter prazer em sacrificar-ta. Mil vezes ao dia os meus suspiros vão ao teu encontro, procuram-te por toda a parte e, em troca de tanto desassossego, só me trazem sinais da minha má fortuna, que cruelmente não me consente qualquer engano e me diz a todo o momento: Cessa, pobre Mariana, cessa de te mortificar em vão, e de procurar um amante que não voltarás a ver, que atravessou mares para te fugir, que está em França rodeado de prazeres, que não pensa um só instante nas tuas mágoas, que dispensa todo este arrebatamento e nem sequer sabe agradecer-to. Mas não, não me resolvo, a pensar tão mal de ti e estou por demais empenhada em te justificar. Nem quero imaginar que me esqueceste. Não sou já bem desgraçada sem o tormento de falsas suspeitas? E porque hei-de eu procurar esquecer todo o desvelo com que me manifestavas o teu amor? Tão deslumbrada fiquei com os teus cuidados, que bem ingrata seria se não te quisesse com desvario igual ao que me levava a minha paixão, quando me davas provas da tua.

Como é possível que a lembrança de momentos tão belos se tenha tornado tão cruel? E que, contra a sua natureza, sirva agora só para me torturar o coração? Ai!, a tua última carta reduziu-o a um estado bem singular: bateu de tal forma que parecia querer fugir-me para te ir procurar. Fiquei tão prostrada de comoção que durante mais de três horas todos os meus sentidos me abandonaram: recusava uma vida que tenho de perder por ti, já que para ti a não posso guardar. Enfim, voltei, contra vontade, a ver a luz: agradava-me sentir que morria de amor, e, além do mais, era um alívio não voltar a ser posta em frente do meu coração despedaçado pela dor da tua ausência.

Depois deste acidente tenho padecido muito, mas como poderei deixar de sofrer enquanto não te vir? Suporto contudo o meu mal sem me queixar, porque me vem de ti. É então isto que me dás em troca de tanto amor? Mas não importa, estou resolvida a adorar-te toda a vida e a não ver seja quem for, e asseguro-te que seria melhor para ti não amares mais ninguém. Poderias contentar te com uma paixão menos ardente que a minha? Talvez encontrasses mais beleza (houve um tempo, no entanto, em que me dizias que eu era muito bonita), mas não encontrarias nunca tanto amor, e tudo o mais não é nada.

Não enchas as tuas cartas de coisas inúteis, nem me voltes a pedir que me lembre de ti. Eu não te posso esquecer, e não esqueço também a esperança que me deste de vires passar algum tempo comigo. Ai!, porque não queres passar a vida inteira ao pé de mim? Se me fosse possível sair deste malfadado convento, não esperaria em Portugal pelo cumprimento da tua promessa: iria eu, sem guardar nenhuma conveniência, procurar-te, e seguir te, e amar-te em toda a parte. Não me atrevo a acreditar que isso possa acontecer; tal esperança por certo me daria algum consolo, mas não quero alimentá-la, pois só à minha dor me devo entregar. Porém, quando meu irmão me permitiu que te escrevesse, confesso que surpreendi em mim um alvoroço de alegria, que suspendeu por momentos o desespero em que vivo. Suplico-te que me digas porque teimaste em me desvairar assim, sabendo, como sabias, que terminavas por me abandonar? Porque te empenhaste tanto em me desgraçar? Porque não me deixaste em sossego no meu convento? Em que é que te ofendi? Mas perdoa-me; não te culpo de nada. Não me encontro em estado de pensar em vingança, e acuso somente o rigor do meu destino. Ao separar-nos, julgo que nos fez o mais temível dos males, embora não possa afastar o meu coração do teu; o amor, bem mais forte, uniu-os para toda a vida. E tu, se tens algum interesse por mim, escreve-me amiúde. Bem mereço o cuidado de me falares do teu coração e da tua vida; e sobretudo vem ver-me.

Adeus. Não posso separar-me deste papel que irá ter às tuas mãos. Quem me dera a mesma sorte! Ai, que loucura a minha! Sei bem que isso não é possível! Adeus; não posso mais. Adeus. Ama-me sempre, e faz-me sofrer mais ainda.

SEGUNDA

Creio que faço ao meu coração a maior das afrontas aos procurar dar-te conta, por escrito, dos meus sentimentos. Seria tão feliz se os pudesse avaliar pela violência dos teus! Mas não posso confiar em ti, nem posso deixar de te dizer, embora sem a força com que o sinto, que não devias maltratar-me assim, com um esquecimento que me desvaira e chega a ser uma vergonha para ti. É justo que suportes, ao menos, as queixas de desgraças que previ ao ver-te decidido a deixar-me. Reconheço que me enganei, ao pensar que procederias com mais lealdade dos que é costume: o excessos do meu amor parece que devia pôr-me acima de quaisquer suspeitas e merecer uma fidelidade que não é vulgar encontrar-se. Mas a tua disposição para me atraiçoar triunfou, afinal, sobre a justiça que devias a tudo quanto fiz por ti. Não deixaria de ser infeliz se soubesse que só ao meu amor ganharas amor, pois tudo quisera dever unicamente à tua inclinação por mim; mas estou tão longe de tal estado que já lá vão seis meses sem receber uma única carta tua. Só à cegueira com que me abandonei a ti posso atribuir tanta desgraça: não tinha obrigação de prever que as minhas alegrias acabariam antes do meu amor? Como poderia esperar que ficasses para sempre em Portugal, renunciasses à tua carreira e ao teu país para não pensares senão em mim? Nenhum alívio há para o meu mal, e se me lembro das minhas alegrias maior é ainda o meu desespero. Terá sido então inútil todo o meu desejo, e não voltarei a ver-te no meu quarto com o ardor e arrebatamento que me mostravas? Ai, que ilusão a minha! Demasiado sei eu que todas as emoções, que em mim se apoderavam da cabeça e do coração, eram em ti despertadas unicamente por certos prazeres e, comos eles, depressa se extinguiam. Precisava, nesses deliciosos instantes, chamar a razão em meu auxílio para moderar o funesto excesso da minha felicidade e me levar a pressentir tudo quanto sofro presentemente. Mas de tal modo me entregava a ti, que era impossível pensar no que pudesse vir envenenar a minha alegria e impedir de me abandonar inteiramente às provas ardentes da tua paixão. Ao teu lado era demasiado feliz para poder imaginar que um dia te encontrarias longe de mim. E, contudo, lembro-me de te haver dito algumas vezes que farias de mim uma desgraçada; mas tais temores depressa se desvaneciam, e com alegria tos sacrificava para me entregar ao encanto, e à falsidade!, dos teus juramentos. Sei bem qual é o remédio para o meu mal, e depressa me livraria dele se deixasse de te amar. Ai, mas que remédio... Não; prefiro sofrer ainda mais do que esquecer-te. E depende isso de mim? Não posso censurar-me ter desejado um só instante deixar de te querer. És tu mais digno de piedade do que eu, pois vale mais sofrer corno sofro do que ter os fáceis prazeres que te hão-de dar em França as tuas amantes. Em nada invejo a tua indiferença: fazes-me pena. Desafio-te a que me esqueças completamente. Orgulho-me de te haver posto em estado de já não teres, sem mim, senão prazeres imperfeitos; e sou mais feliz que tu, porque tenho mais em que me ocupar.

Nomearam-me há pouco tempo porteira deste convento. Todos os que falam comigo crêem que estou doida, não sei que lhes respondo, e é preciso que as freiras sejam tão insensatas como eu para me julgarem capaz seja do que for. Ah, como eu invejo a sorte do Manuel e do Francisco! Porque não estou eu sempre ao pé de ti, como eles? Teria ido contigo e servir-te-ia certamente com mais dedicação.

Nada desejo no mundo senão ver-te. Lembra-te ao menos de mim. Bastar-me-ia que me lembrasses, mas eu nem disso tenho a certeza. Quando te via todos os dias não cingia as minhas esperanças à tua lembrança mas tens-me ensinado a submeter-me a tudo quanto te apetece.

Apesar disso, não estou arrependida de te haver adorado. Ainda bem que me seduziste. A crueldade da tua ausência, talvez eterna, em nada diminuiu a exaltação do meu amor Quero que toda a gente o saiba, não faço disso nenhum segredo; estou encantada por ter feito tudo quanto fiz por ti, contra toda a espécie de conveniências. E já que comecei, a minha honra e a minha religião hão-de consistir só em amar-te perdidamente toda a vida.

Não te digo estas coisas para te obrigar a escrever-me. Ah, nada faças contrafeito! De ti só quero o que te vier do coração, e recuso todas as provas de amor que tu próprio te possas dispensar. Com prazer te desculparei, se te for agradável não te dares ao trabalho de me escrever; sinto uma profunda disposição para te perdoar seja o que for.

Um oficial francês, caridosamente, falou-me de ti esta manhã durante mais de três horas. Disse-me que em França fora feita a paz. Se assim é, não poderias vir ver-me e levar-me para França contigo? Mas não o mereço. Faz o que quiseres: o meu amor já não depende da maneira como tu me tratares.

Desde que partiste nunca mais tive saúde, e todo o meu prazer consiste em repetir o teu nome mil vezes ao dia. Algumas freiras, que conhecem o estado deplorável a que me reduziste, falam-me de ti com frequência. Saio o menos possível deste quarto onde vieste tanta vez, e passo o tempo a olhar o teu retrato, que amo mil vezes mais que à minha vida. Sinto prazer em olhá-lo, mas também me faz sofrer, sobretudo quando penso que talvez nunca mais te veja. Por que fatalidade não hei-de voltar a ver-te? Ter-me-ás deixado para sempre? Estou desesperada, a tua pobre Mariana já não pode mais: desfalece ao terminar esta carta. Adeus, adeus, tem pena de mim!

TERCEIRA

Que há-de ser de mim? Que queres tu que eu faça? Estou tão longe de tudo quanto imaginei! Esperava que me escrevesses de toda a parte por onde passasses e que as tuas cartas fossem longas; que alimentasses a minha paixão com a esperança de voltar a ver-te; que uma inteira confiança na tua fidelidade me desse algum sossego, e ficasse, apesar de tudo, num estado suportável, sem excessivo sofrimento. Tinha até formado uns vagos projectos de fazer todos os esforços que pudesse para me curar, se tivesse a certeza de me haveres esquecido por completo. A tua ausência, alguns impulsos de devoção, o receio de arruinar inteiramente o que me resta de saúde com tanta vigília e tanta aflição, as poucas possibilidades do teu regresso, a frieza dos teus sentimentos e da tua despedida, a tua partida justificada com falsos pretextos, e tantas outras razões, tão boas como inúteis, prometiam ser-me ajuda suficiente, se viesse a precisar dela. Não sendo, afinal, senão eu própria o meu inimigo, não podia suspeitar de toda a minha fraqueza, nem prever todo o sofrimento de agora.

Ai, como sou digna de piedade por não partilhar contigo as minhas mágoas, e ser só minha a desventura! Esta ideia mata-me, e morro de terror ao) pensar que nunca te houvesses entregado completamente aos nossos prazeres. Sim, reconheço agora a falsidade do teu arrebatamento. Enganaste-me sempre que falaste do encantamento que sentias quando eslavas a sós comigo. Unicamente à minha insistência devo os teus cuidados e a tua ternura. Intentaste desvairar-me a sangue-frio; nunca olhaste a minha paixão senão como um troféu, o teu coração não foi verdadeiramente atingido por ela. Serás tão infeliz, e terás tão pouca delicadeza, que só para isso te servisse o meu ardor? E como é possível que, com tanto amor, não te houvesse feito inteiramente feliz? Tenho pena, por amor de ti apenas, dos infinitos prazeres que perdeste. Será possível que não te tenham interessado? Ah, se os conhecesses, perceberias, sem dúvida, que são mais delicados do que o de me haveres seduzido, e terias compreendido que é bem mais comovente, e bem melhor, amar violentamente que ser amado.

Não sei o que sou, nem o que faço, nem o que quero; estou despedaçada por mil sentimentos contrários. Pode imaginar-se estado mais deplorável? Amo-te de tal maneira que nem ouso sequer desejar que venhas a ser perturbado por igual arrebatamento. Matar-me-ia ou, se o não fizesse, morreria desesperada, se viesse a ter a certeza que nunca mais tinhas descanso, que tudo te era odioso, e a tua vida não era mais que perturbação, desespero e pranto. Se não consigo já suportar o meu próprio mal, como poderia ainda com o teu, a que sou mil vezes mais sensível? Contudo, não me resolvo a desejar que não penses em mim; e confesso ter ciúmes terríveis de tudo o que em França te dá gosto e alegria, e impressiona o teu coração.

Não sei porque te escrevo: terás, quando muito, piedade de mim, e eu não quero a tua piedade. Contra mim própria me indigno, quando penso em tudo o que te sacrifiquei: perdi a reputação, expus-me à cólera de minha família, expus-me à cólera de minha família, a severidade das leis deste país para com as freiras, e à tua ingratidão, que me parece o maior de todos os males. Apesar disso, creio que os meus remorsos não são verdadeiros; do fundo do meu coração queria ter corrido ainda perigos maiores pelo teu amor, e sinto um prazer fatal por ter arriscado a vida e a honra por ti. Não deveria oferecer-te o que tenho de mais precioso? E não devo sentir-me satisfeita por ter feito o que fiz? O que me não satisfaz, pelo menos assim me parece, é o sofrimento e o desvario deste amor, embora não possa, pobre de mim!, iludir-me a ponto de estar contente contigo. Vivo - que infidelidade! - e faço tanto por conservar a vida como por perdê-la! Morro de vergonha! Então o meu desespero está só nas minhas cartas? Se te amasse tanto como já mil vezes te disse, não teria morrido há muito tempo? Enganei-te, és tu que deves queixar-te de mim. Ah, porque não te queixas? Vi-te partir, não tenho esperança de te ver regressar e no entanto respiro. Atraiçoei-te; peço-te perdão. Mas não, não me perdoes! Trata—me com dureza. Que a violência dos meus sentimentos te não baste! Sê mais exigente!

Ordena-me que morra de amor por ti! Suplico-te que me ajudes a vencer a fraqueza própria de uma mulher, e que toda a minha indecisão acabe em puro desespero. Um fim trágico obrigar-te-ia, sem dúvida, a pensar mais em mim; talvez fosses sensível a uma morte extraordinária, e a minha memória seria amada. Não é isso preferível ao estado a que me reduziste?

Adeus. Era melhor nunca te ter visto. Ah, sinto até ao fundo a mentira deste pensamento e reconheço, no momento em que escrevo, que prefiro ser desgraçada amando-te do que nunca te haver conhecido. Aceito, assim, sem uma queixa, a minha má fortuna, pois não a quiseste tornar melhor. Adeus: promete-me que terás saudades minhas se vier a morrer de tristeza; e oxalá o desvario desta paixão consiga afastar-te de tudo. Tal consolação me bastará, e se é forçoso abandonar-te para sempre, queria ao menos não te deixar a nenhuma outra. E serias tão cruel que te servisses do meu desespero para te tornares mais sedutor, e te gabares de ter despertado a maior paixão do mundo? Adeus, mais urna vez. Escrevo-te cartas tão longas! Não tenho cuidado contigo! Peço-te que me perdoes, e espero que terás ainda alguma indulgência com uma pobre insensata, que o não era, como sabes, antes de te amar. Adeus; parece-me que te falo de mais do estado insuportável em que me encontro; mas agradeço-te, com toda a minha alma, o desespero que me causas, e odeio a tranquilidade em que vivi antes de te conhecer Adeus. O meu amor aumenta a cada momento. Ah, quanto me fica ainda por dizer..

QUARTA

O teu tenente acaba de me contar que um temporal te obrigou a arribar ao Reino do Algarve. Receio que tenhas sofrido muito no mar, e este temor de tal modo se apoderou de mim, que nem tenho pensado nas minhas mágoas. Estás convencido que o teu tenente se preocupa mais com o que te acontece do que eu? Porque está então mais bem informado e, enfim, porque não me tens escrito?

Bem desgraçada sou, se depois da tua partida ainda não tiveste ocasião de o fazer; e mais ainda, se a tiveste e não me escreveste. Não sei de maior ingratidão e injustiça; mas ficaria aflitíssima se, por causa disso, te viesse a acontecer qualquer desgraça, pois prefiro não ser vingada a que sejas punido. Resisto a tudo o que parece mostrar-me que já me não amas, e com mais facilidade me entrego cegamente à minha paixão do que às razões que tenho para lamentar o teu abandono.

Quanta inquietação me terias poupado se, quando nos conhecemos, o teu procedimento fosse tão descuidado como o é agora! Mas quem, como eu, se não deixaria enganar por tantos cuidados , e a quem não pareceriam verdadeiros? Que difícil resolvermo-nos a duvidar da lealdade de quem amamos! Sei muito bem que te serves de qualquer desculpa, mas, mesmo sem pensares em dar-ma, o meu amor é tão fiel que só consente em culpar-te para ser maior o prazer em te justificar.

Atormentaste-me com a tua insistência, transtornaste-me com o teu ardor, encantaste-me com a tua delicadeza, confiei nas tuas juras, seduziu-me a minha inclinação violenta, e o que se seguiu a tão agradável e feliz começo não são mais que suspiros, lágrimas e uma tristíssima morte que julgo sem remédio. E certo que tive, ao amar-te, alegrias surpreendentes, mas custam-me agora os maiores tormentos: são extremas todas as emoções que me causas. Se tivesse resistido com afinco ao teu amor, se te houvesse dados motivos de desgosto ou de ciúme para mais te prender, se tivesses notado em mim qualquer intencional reserva, se, enfim, tivesse tentado opor (embora, sem duvida, fossem inúteis tais esforços) a razão à natural inclinação que tenho por ti, e que cedo me fizeste notar, poderias então punir-me severamente e servires-te do teu domínio sobre mim; porém antes de dizeres que me querias já eu te julgava digno de amor, manifestaste-me a tua paixão, fiquei deslumbrada, e abandonei-me a ti perdidamente.

Tu não estavas cego como eu, porque me deixaste então chegar ao estado a que cheguei? Que querias dum desvario que não podia senão importunar-te? Se sabias que não ficavas em Portugal, porque me escolheste a mim para tornares tão desgraçada? Terias, certamente encontrado neste país uma mulher mais bonita com quem tivesses os mesmos prazeres, pois só os de natureza grosseira procuravas; que te amasse fielmente enquanto aqui estivesses; que se resignasse, com o tempo, à tua ausência, e a quem poderias abandonar sem perfídia e crueldade. O teu procedimento é mais de um tirano empenhado em perseguir, que de um amante preocupado apenas em agradar. Ai!, porque tratas tão mal um coração que é teu?

Bem sei que é tão fácil para ti desprenderes-te de mim como para mim o foi prender-me a ti. Eu teria resistido a razões bem mais poderosas do que as que te levaram a partir, sem precisar de invocar o meu amor por ti, nem me passar pela cabeça que fazia fosse o que fosse de extraordinário: todas elas me pareceriam insignificantes e nunca nenhuma poderia arrancar-me de ao pé de ti. Mas tu quiseste aproveitar os pretextos que encontraste para regressar a França. Um navio partia - porque não o deixaste partir? Tua família havia-te escrito - não sabias quanto a minha me tem perseguido? Razões de honra levavam-te a abandonar-me - fiz eu algum caso da minha? Tinhas obrigação de servir o teu Rei - mas, se é verdade o que dizem dele, não necessitava dos teus serviços e ter-te-ia dispensado.

Que felicidade a minha, se tivéssemos passado a vida juntos! Mas, se era forçoso que uma cruel ausência nos separasse, creio que devo estar satisfeita por não ter sido infiel, e por nada do mundo quereria ter cometido acção tão indigna. Como pudeste, conhecendo o meu coração e a minha ternura até ao fundo, decidir-te a deixar-me para sempre, e a expor-me ao tormento de que só venhas a lembrar te de mim quando me sacrificas a nova paixão?

Bem sei que te amo perdidamente; no entanto, não lamento a violência dos impulsos do meu coração; habituei-me à sua tirania, e já não poderia viver sem este prazer que vou descobrindo: amar-te entre tanta mágoa. O que me desgosta e atormenta é o ódio e a aversão que ganhei a tudo. A família, os amigos e este convento são-me insuportáveis. Tudo o que seja obrigada a ver, tudo o que inadiavelmente tenha de fazer, me é odioso. Tão ciosa sou da minha paixão que julgo dizerem-te respeito todas as minhas acções e todas as minhas obrigações. Sim, tenho escrúpulo de não serem para ti todos os momentos da minha vida. Ai!, que seria de mim sem tanto ódio e tanto amor a encher-me o coração? Conseguiria eu sobreviver ao que obsessivamente me preocupa para levar uma existência tranquila e sem cuidados? Tal vazio e tal insensibilidade não me convêm.

Toda a gente se apercebeu da completa mudança do meu carácter, dos meus modos, do meu ser. Minha mãe falou-me nisto, primeiro com azedume, depois com certa brandura. Nem sei que lhe respondi; parece-me que lhe confessei tudo. Até as freiras mais austeras têm dó do estado em que me encontro, que lhes merece alguma simpatia, e até cuidado. Todos se comovem com o meu amor, só tu ficas profundamente indiferente, escrevendo-me apenas frias cartas, cheias de repetições, metade do papel em branco, dando grosseiramente a entender que estavas morto por acabá-las.

Dona Brites insistiu, nestes últimos dias, para que saísse do meu quarto; julgando distrair-me, levou-me a passear até ao balcão de onde se avista Mértola. Segui-a, mas fui logo ferida por tão atroz lembrança que passei o resto do dia lavada em lágrimas. Trouxe-me outra vez para o meu quarto, atirei-me para cima da cama, e ali fiquei a reflectir na pouca esperança que tenho de vir um dia a curar me. Tudo o que fazem para me confortar agrava o meu sofrimento, e nos próprios remédios encontro novas razões de aflição. Muitas vezes dali te vi passar com um ar que me deslumbrava; estava naquele balcão no dia fatal em que senti os primeiros sinais da minha desgraçada paixão. Pareceu-me que pretendias agradar-me, embora não me conhecesses; convenci-me de que me havias distinguido entre todas aquelas que estavam comigo; quando paravas imaginava que o fazias intencionalmente para que melhor te visse, e admirasse o garbo e a destreza com que dominavas o cavalo; dava comigo assustada, quando o levavas por sítios perigosos; enfim, interessava-me secretamente por todas as tuas acções, sentia já que não eras de modo nenhum indiferente, e reclamava para mim tudo quanto fazias. Conheces de sobra o que se seguiu a tal começo; e, embora não tenha obrigação de te poupar, não devo falar-te nisso, com receio de te tornar ainda mais culpado, se possível, do que já és, e ter de me acusar por tantos e inúteis esforços que te obrigassem a ser-me fiel. Nunca o serás! Se não conseguir vencer a tua ingratidão à força de amor e renúncia, como haveria de consegui-lo com cartas e queixumes?

Estou mais que convencida do meu infortúnio; a injustiça do teu procedimento não me deixa a menor dúvida, e tudo devo recear, já que me abandonaste.

Serei só eu a sentir o teu encanto? Nenhuns outros olhos darão por ele? Creio que me não seria desagradável se, de algum modo, os sentimentos de outras justificassem os meus, e gostaria que todas as mulheres de França te achassem encantador, mas que nenhuma te amasse e nenhuma te agradasse. Este desejo é inconcebível e ridículo; sei por experiência que és incapaz de fidelidade e não precisas de ajuda para me esqueceres, nem a isso seres levado por nova paixão. Desejaria eu que tivesses um motivo razoável? Seria mais desgraçada, é certo, mas não serias tão culpado.

Vejo que ficarás em França sem grande prazer, e com inteira liberdade. Será a fadiga de tão longa viagem, qualquer pequena conveniência, ou o receio de não corresponderes à minha exaltação que aí te retêm? De mim, nada receies! Bastar-me-ia ver-te de vez em quando e saber apenas que estávamos no mesmo lugar. E talvez me iluda; sei lá se não serás mais sensível à crueldade e à frieza de outra mulher do que foste à minha generosidade. Será possível que gostes de quem te faça mal? Mas antes de te enleares numa grande paixão, reflecte bem no horror do meu sofrimento, na incerteza dos meus planos, na contradição dos meus impulsos, na extravagância das minhas cartas, na minha confiança, e aflição, e desejos, e ciúmes. Ah, serás um desgraçado! Suplico-te que tires ao menos proveito do estado em que me encontro, e que assim o meu sofrimento não seja inútil.

Haverá cinco ou seis meses, fizeste-me uma confidência bem desagradável: confessaste-me, com a maior franqueza, teres amado uma mulher na tua terra; se é ela que te impede de regressar, manda-mo dizer sem rodeios, para que eu deixe de me consumir. Um resto de esperança tem-me ainda de pé, mas, se a não puder sustentar, prefiro perdê-la por completo e perder-me também. Envia-me o retrato dela e alguma das suas cartas e conta-me tudo quanto te diz. Talvez encontre nisso razões para me consolar, ou afligir ainda mais. Neste estado é que não posso permanecer, e qualquer mudança me será favorável. Gostaria também de ter o retrato do teu irmão e da tua cunhada. Tudo o que te diz respeito me enternece, a minha dedicação ao que te pertence é completa; só o que a mim se refere não me preocupa. Às vezes parece-me que até me sujeitaria a servir aquela que amas. O tormento que me causas e o teu desprezo abalaram-me de tal modo, que nem sequer ouso pensar que pudesse vir a ter ciúmes de ti, com receio de te desagradar; e creio ter feito o pior que podia fazer ao atrever-me a censurar-te. Também estou convencida de que não devia impor-te desvairadamente como faço, por vezes, um sentimento que não aprovas.

Há já muito tempo que um oficial espera esta carta. Tencionava escrevê-la de forma a não te aborrecer, mas é tão incoerente que será melhor acabá-la. Ai, não está em mim poder fazê-lo! Quando te escrevo é como se falasse contigo e estivesses, de algum modo, mais perto de mim. A próxima não será tão longa nem tão importuna; podes abri-la e lê-la, confiado na minha promessa. Na verdade não devo falar-te de uma paixão que te desagrada, e não voltarei a falar nela.

Vai fazer um ano, faltam só alguns dias, que me entreguei inteiramente a ti. A tua paixão parecia-me tão sincera e ardente, que não poderia imaginar sequer que a minha te viesse a aborrecer, a ponto de te obrigar a fazer quinhentas léguas, e a expores-te a naufrágios, para te afastares de mim. Não esperava ser tratada assim por ninguém: devias lembrar-te do meu pudor, da minha confusão, da minha vergonha, mas tu não te lembras de nada que possa levar-te contra vontade a amar-me.

O oficial que há-de levar esta carta previne-me, pela quarta vez, que quer partir. Como ele tem pressa! Abandona, com certeza, alguma desgraçada neste pais. Adeus. Custa-me mais acabar esta carta d que te custou a ti deixa-me, talvez para sempre. Adeus. Não me atrevo sequer a chamar-te meu amor, nem a abandonar-me completamente a tudo o que sinto. Quero-te mil vezes mais que à minha vida e mil vezes mais do que imagino. Ah, corno eu te amo, e como tu és cruel! Nunca me escreves; não consigo) deixar de te dizer ainda isto. Recomeço, e oficial partirá. Se partir, que importa? Escrevo mais para mim do que para ti; não procuro senão alívio. O tamanho desta carta vai assustar-te: não a lerás. Que fiz eu para ser tão desgraçada? Porque envenenaste a minha vida? Porque não nasci noutro país? Adeus. Perdoa-me. Já não ouso pedir-te que me queiras. Vê ao que me reduziu o meu destino. Adeus.

QUINTA

Escrevo-lhe pela última vez e espero fazer-lhe sentir, na diferença de termos e modos desta carta, que finalmente acabou por me convencer de que já me não ama e que devo, portanto, deixar de o amar.

Mandar-lhe-ei, pelo primeiro meio, o que me resta ainda de si. Não receie que lhe volte a escrever, pois nem sequer porei o seu nome na encomenda. De tudo isso encarreguei D. Brites, que eu habituara a confidências bem diferentes. Os seus cuidados não me serão tão suspeitos quanto os meus. Ela tomará as precauções necessárias para que eu fique com a certeza de que recebeu o retrato e as pulseiras que me deu. Quero porém dizer-lhe que me encontro, há já alguns dias, na disposição de me desfazer e queimar essas lembranças do seu amor, que tão preciosas me foram. Mas tanta franqueza lhe tenho mostrado que nunca acreditaria que eu fosse capaz de chegar a tal extremo. Quero sentir até ao fim a pena que tenho em separar-me delas e causar-lhe ao menos algum despeito.

Confesso-lhe, para vergonha minha e sua, que me encontrei mais presa do que quero dizer-lhe a estas futilidades, e senti outra vez necessidade de toda a minha reflexão para me separar de cada uma em particular, e isto quando já me gabava de me ter desprendido de si. Mas, com tantos motivos, consegue-se sempre o que se deseja. Pus tudo nas mãos de D. Brites. Quantas lágrimas me não custou esta resolução! Depois de mil impulsos e mil hesitações, que nem pode imaginar, e de que certamente não lhe darei conta, roguei-lhe para me não voltar a falar nelas, nem mas restituir ainda que lhas pedisse só para as ver uma vez mais e, por fim, remeter-lhas sem me prevenir.

Não conheci o desvario do meu amor senão quando me esforcei de todas as maneiras para me curar dele, e receio que nem ousasse tentá-lo se pudesse prever tanta dificuldade e tanta violência. Creio que me teria sido menos doloroso continuar a amá-lo, apesar da sua ingratidão, do que deixá-lo para sempre. Descobri que lhe queria menos do que à minha paixão, e sofri penosamente em combatê-la, depois que o seu indigno procedimento me tornou odioso todo o seu ser. O orgulho tão próprio das mulheres não me ajudou a tomar qualquer decisão contra si. Ai, suportei o seu desprezo, e teria suportado o ódio e o ciúme que me provocasse a sua inclinação por outra! Ao menos, teria qualquer paixão a combater. Mas a sua indiferença é intolerável. Os impertinentes protestos de amizade e a ridícula correcção da sua última carta provaram-me ter recebido todas as que lhe escrevi e que, apesar de as ter lido, não perturbaram o seu coração. Ingrato! E a minha loucura é tanta ainda, que desespero por já não poder iludir-me com a ideia de não chegarem aí, ou de não lhe terem sido entregues.

Detesto a sua franqueza. Pedi-lhe eu para me dizer pura e simplesmente a verdade? Porque me não deixou com a minha paixão? Bastava não me ter escrito: eu não procurava ser esclarecida. Não me chegava a desgraça de não ter conseguido de si o cuidado de me iludir? Era preciso não lhe poder perdoar? Saiba que acabei por ver quanto é indigno dos meus sentimentos; conheço agora todas as suas detestáveis qualidades. Mas, se tudo quanto fiz por si pode merecer-lhe qualquer pequena atenção para algum favor que lhe peça, suplico-lhe que não me escreva mais e me ajude a esquecê-lo completamente. Se me mostrasse, ao de leve que fosse, ter sentido algum desgosto ao ler esta carta, talvez eu acreditasse; talvez a sua confissão e o seu arrependimento me enchessem de cólera e de despeito; e tudo isso poderia de novo incendiar-me.

Não se meta pois no meu caminho; destruiria, sem dúvida, todos os meus projectos, fosse qual fosse a maneira por que se intrometesse. Não me interessa saber o resultado desta carta; não perturbe o estado para que me estou preparando. Parece-me que pode estar satisfeito com o mal que me causa, qualquer que fosse a sua intenção de me desgraçar. Não me tire desta incerteza; com o tempo espero fazer dela qualquer coisa parecida com a tranquilidade. Prometo-lhe não o ficar a odiar: por de mais desconfio de sentimentos de sentimentos exaltados para me permitir intentá-lo.

Estou convencida de que talvez encontrasse aqui um amante melhor e mais fiel; mas ai!, quem me poderá ter amor? Conseguirá a paixão de outro homem absorver-me? Que poder teve a minha sobre si? Não sei eu por experiência que um coração enternecido nunca mais esquece quem lhe revelou prazeres que não conhecia, e de que era susceptível?, que todos os seus impulsos estão ligados ao ídolo que criou? que os seus primeiros pensamentos e primeiras feridas não podem curar-se nem apagar-se?, que todas as paixões que se oferecem como auxílio, e se esforçam por o encher e apaziguar, lhe prometem em vão um sentimento que não voltará a encontrar? , que todas as distracções que procura, sem nenhuma vontade de as encontrar, apenas servem para o convencer que nada ama tanto como a lembrança do seu sofrimento? Porque me deu a conhecer a imperfeição e o desencanto de uma afeição que não deve durar eternamente, e a amargura que acompanha um amor violento, quando não é correspondido? E por que razão, uma cega inclinação e um cruel destino, persistem quase sempre em prender-nos àqueles que só a outros são sensíveis?

Mesmo que esperasse distrair-me com nova afeição, e deparasse com alguém capaz de lealdade, é tal a pena que sinto por mim que teria muitos escrúpulos em arrastar o último dos homens ao estado a que me reduziu. E embora me não mereça já nenhum respeito, não poderia decidir-me a tão cruel vingança, mesmo se, por uma mudança que não vislumbro, isso viesse a depender de mim.

Procuro neste momento desculpá-lo, e sei bem que uma freira raramente inspira amor; no entanto parece-me que, se a razão fosse usada na escolha, deveriam preferir-se às outras mulheres: nada as impede de pensar constantemente na sua paixão, nem são desviadas por mil coisas com que as outras se distraem e ocupam. Creio que não deve ser muito agradável ver aquelas a quem amamos sempre distraídas com futilidades; e é preciso ter bem pouca delicadeza para suportar, sem desespero, ouvi-las só falar de reuniões, atavios e passeios. Continuamente se está exposto a novos ciúmes, pois elas são obrigadas a certas atenções, certas condescendências, certas conversas. Quem pode garantir que em tais ocasiões se não divirtam, e que suportem os maridos somente com extremo desgosto, e sem qualquer aprovação? Como elas devem desconfiar de um amante que lhes não peça contas rigorosas de tudo isso, que acredite facilmente e sem inquietação no que lhe dizem, e as veja, confiante e tranquilo, sujeitas a todas essas obrigações!

Mas não pretendo provar-lhe com boas razões que me devia amar. Fracos meios seriam estes, e eu outros usei bem melhores sem nenhum resultado. Conheço de sobra o meu destino para tentar mudá-lo. Hei-de ser toda a vida uma desgraçada! Não o era já quando o via todos os dias? Morria de medo que me não fosse fiel; queria vê-lo a cada momento e isso não era possível; inquietava-me com o perigo que corria ao entrar neste convento; não vivia quando estava em campanha; desesperava-me por não ser mais bonita e mais digna de si; lamentava a mediocridade da minha condição; pensava nos prejuízos que lhe podia acarretar a afeição que parecia ter por mim; imaginava que não o amava bastante; receava, por si, a cólera de minha família; enfim, encontrava-me num estado tão lamentável como aquele em que estou agora.

Se me tivesse dado alguma prova de amor, depois de ter saído de Portugal, teria feito todos os esforços para sair daqui; ter-me-ia disfarçado para ir ter consigo. Ai, que teria sido de mim se não se importasse comigo, depois de estar em França? Que horror! Que loucura! Que vergonha tão grande para a minha família, a quem quero tanto, depois que deixei de o amar!

A sangue-frio, como vê, reconheço que podia ainda ser mais digna de piedade do que sou. Ao menos uma vez na vida falo lhe ponderadamente. Quanto lhe agradará a minha moderação, e como ficará satisfeito comigo! Mas não quero sabê-lo! Já lhe pedi, e volto a suplicar-lho para não me escrever mais.

Nunca reflectiu na maneira como me tem tratado? Nunca pensou que me deve mais obrigações do que a qualquer outra pessoa? Amei-o como uma louca, tudo desprezei! O seu procedimento não é de um homem de bem. É preciso que tivesse por mim uma aversão natural para me não ter amado apaixonadamente. Deixei-me fascinar por qualidades bem medíocres. Que fez para me agradar? Que sacrifícios fez por mim? Não procurou tantos outros prazeres? Renunciou ao jogo e à caça? Não foi o primeiro a partir para campanha? Não foi o último a regressar? Expôs-se loucamente, apesar de tanto lhe haver pedido que se poupasse por amor de mim. Nunca procurou um meio de se fixar em Portugal, onde era estimado. Uma carta de seu irmão bastou para o fazer abalar, sem a menor hesitação. E não vim eu saber que, durante a viagem, a sua disposição era a melhor do mundo?

Forçoso me é confessar que tenho razões para o odiar mortalmente. Ah, eu própria atraí sobre mim tanta desgraça! Acostumei-o desde início, ingenuamente, a uma grande paixão, e é necessário algum artifício para nos fazermos amar. Devem procurar-se com habilidade os meios de agradar: o amor por si só não suscita amor. Como pretendia que eu o amasse, e como havia formado tal desígnio, não houve nada que não tivesse feito para o atingir; ter-se-ia decidido mesmo a amar-me, se tal fosse preciso. Mas percebeu que o amor não era necessário para o êxito do seu empreendimento, nem dele precisava para nada. Que perfídia! Pensa poder enganar-me impunemente? Se por acaso voltar a este país, declaro-lhe que o entregarei à vingança da minha família.

Muito tempo vivi num abandono e numa idolatria que me horrorizam, e o remorso persegue-me com uma crueldade insuportável. Sinto uma vergonha enorme dos crimes que me levou a cometer; já não tenho pobre de mim!, a paixão que me impedia de conhecer-lhes a monstruosidade. Quando deixará o meu coração de ser dilacerado? Quando é que me livrarei desta cruel perturbação? Apesar de tudo, creio que não lhe desejo nenhum mal, e talvez me não importasse que fosse feliz. Mas como poderá sê-lo, se tiver coração?

Quero escrever-lhe ainda outra carta para lhe mostrar que daqui a algum tempo, talvez já tenha mais serenidade. Com que satisfação lhe censurarei então o seu injusto procedimento, quando este já não me importunar; lhe farei sentir que o desprezo; que falo da sua traição com a maior indiferença; que esqueci alegrias e penas; e só me lembro de si quando me quero lembrar!

Concordo que tem sobre mim muitas vantagens, e que me inspirou uma paixão que me fez perder a razão; mas não deve envaidecer-se com isso. Eu era nova, ingénua; haviam-me encerrado neste convento desde pequena; não tinha visto senão gente desagradável; nunca ouvira as belas coisas que constantemente me dizia; parecia-me que só a si devia o encanto e a beleza que descobrira em mim, e na qual me fez reparar; só ouvia dizer bem de si; toda a gente me dispunha a seu favor; e ainda fazia tudo para despertar o meu amor… Mas, por fim, livrei-me do encantamento. Grande foi a ajuda que me deu, e de que tinha, confesso, extrema necessidade.

Ao devolver-lhe as suas cartas, guardarei, cuidadosamente, as duas últimas que me escreveu ; hei-de lê-las ainda mais do que li as primeiras, para não voltar a cair nas minhas fraquezas. Ah, quanto me custam e como teria sido feliz se tivesse consentido que o amasse sempre! Reconheço que me preocupo ainda muito com as minhas queixas e a sua infidelidade, mas lembre-se que a mim própria prometi um estado mais tranquilo, que espero atingir, eu então tomarei uma resolução extrema, que virá a conhecer sem grande desgosto. De si nada mais quero. Sou uma doida, passo o tempo a dizer a mesma coisa. É preciso deixá-lo e não pensar mais em si. Creio mesmo que não voltarei a escrever-lhe. Que obrigação tenho eu de lhe dar conta de todos os meus sentimentos?

07/05/2010

DIALÉTICA DA MALANDRAGEM – ANTONIO CANDIDO

Em 1894 José Veríssimo definiu as Memórias de um sargento de milícias como romance de costumes que, pelo fato de descrever lugares e cenas do Rio de Janeiro no tempo de D. João VI, se caracterizaria por uma espécie de realismo antecipado; em conseqüência, falava bem dele, como homem de um momento dominado pela estética do Naturalismo.
Praticamente nada se disse de novo até 1941, quando Mário de Andrade reorientou a crítica, negando que fosse um precursor. Seria antes um continuador atrasado, um romance de tipo marginal, afastado da corrente média das literaturas, como os de Apuleio e Petrônio, na Antigüidade, ou o Lazarillo de Tormes, no Renascimento -, todos com personagens anti-heróicos que são modalidades de pícaros.
Uma terceira etapa foi aberta em 1956 por Darcy Damasceno, que abordou a análise estilística, tendo como pano de fundo uma excelente rejeição de posições anteriores:


Não há que considerar-se picaresco um livro pelo fato de nele haver um pícaro mais adjetival que substantival, mormente se a este livro faltam as marcas peculiares do gênero picaresco; nem histórico seria ele, ainda que certa dose de veracidade haja servido à criação de tipos ou à evocação de época; menos ainda realista, quando a leitura mais atenta nos torna flagrante o predomínio do imaginoso e do improvisado sobre a retratação ou a reconstituição histórica.


E depois de mostrar com pertinência como são reduzidas as indicações documentárias, prefere o designativo de romance de costumes. (1)
Concordo com estas opiniões oportunas e penetrantes (infelizmente muito breves), que podem servir de ponto de partida para o presente ensaio. A única dúvida seria referente ao realismo, e talvez nem esta, se Darcy Damasceno estiver se referindo especificamente ao conceito usual das classificações literárias, que assim designam o que ocorreu na segunda metade do século XIX, enquanto o meu intuito é caracterizar uma modalidade bastante peculiar, que se manifesta no livro de Manual Antônio de Almeida.
1. Romance picaresco?
O ponto de vista segundo o qual ele é um romance picaresco, muito difundido a partir de Mário de Andrade (que todavia não diz bem isto), recebeu um cunho de aparente rigor da parte de Josué Montello, que pensa ter encontrado as suas matrizes em obras como La vida de Lazarillo de Tormes (1554) e Vida y hechos de Estebanillo González (1645). (2)
Se fosse exato, estaria resolvido o problema da filiação e, com ele, grande parte do de caracterização crítica. Mas na verdade Josué Montello fundou-se numa petição de princípio, tomando como provado o que restava provar, isto é, que as Memórias são um romance picaresco. A partir daí, supervalorizou algumas analogias fugazes e achou o que tencionava achar, mas não o que um cotejo objetivo teria mostrado. De fato, a análise da picaresca espanhola faz ver que aqueles dois livros nada motivaram de significativo no de Manuel Antônio de Almeida, embora seja possível que este haja recebido sugestões marginais de algum outro romance espanhol ou feito à maneira dos espanhóis, como ocorreu por toda a Europa no século XVII e parte do XVIII. O que se pode fazer de mais garantido é comparar as características do "nosso memorando" (como diz o romancista do seu personagem) com as do típico herói ou anti-herói picaresco, minunciosamente levantadas por Chandler na sua obra sobre o assunto (3).
Em geral, o próprio pícaro narra as suas aventuras, o que fecha a visão da realidade em torno do seu ângulo restrito; e esta voz na primeira pessoa é um dos encantos para o leitor, transmitindo uma falsa candura que o autor cria habilmente e já é recurso psicológico de caracterização. Ora, o livro de Manuel Antônio é contado na terceira pessoa por um narrador (ângulo primário) que não se identifica e varia com desenvoltura o ângulo secundário -, trazendo-o de Leonardo Pai a Leonardo Filho, deste ao Compadre ou à Comadre, depois à Cigana e assim por diante, de maneira a estabelecer uma visão dinâmica da matéria narrada. Sob este aspecto o herói é um personagem como os outros, apesar de preferencial; e não o instituidor ou a ocasião para instituir o mundo fictício, como o Lazarillo, Estebanillo, Guzman de Alfarache, a Pícara Justina ou Gil Braz de Santilhana.
Em compensação, Leonardo Filho tem com os narradores picarescos algumas afinidades: como eles, é de origem humilde e, como alguns deles, irregular, "filho de uma pisadela e um beliscão". Ainda como eles é largado no mundo, mas não abandonado, como foram o Lazarillo ou o Buscón, de Quevedo; pelo contrário, mal os pais o deixam o destino lhe dá um pai muito melhor na pessoa do Compadre, o bom barbeiro que toma conta dele para o resto da vida e o abriga da adversidade material. Tanto assim que lhe falta um traço básico do pícaro: o choque áspero com a realidade, que leva à mentira, à dissimulação, ao roubo, e constitui a maior desculpa das "picardias". Na origem o pícaro é ingênuo; a brutalidade da vida é que aos poucos o vai tornando esperto e sem escrúpulos, quase como defesa; mas Leonardo, bem abrigado pelo Padrinho, nasce malandro feito, como se se tratasse de uma qualidade essencial, não um atributo adquirido por força das circunstâncias.
Mais ainda: a humildade da origem e o desamparo da sorte se traduzem necessariamente, para o protagonista dos romances espanhóis e os que os seguiram de perto, na condição servil. Em algum momento da sua carreira ele é criado, de tal modo que já se supôs erradamente que a sua designação proviesse daí -, o termo "pícaro" significando um tipo inferior de servo, sobretudo ajudante de cozinha, sujo e esfarrapado. E é do fato de ser criado que decorre um princípio importante na estruturação do romance, pois passando de amo a amo o pícaro vai-se movendo, mudando de ambiente, variando a experiência e vendo a sociedade no conjunto. Mas o nosso Leonardo fica tão longe da condição servil, que o Padrinho se ofende quando a Madrinha sugere que lhe mande ensinar um ofício manual; o excelente homem quer vê-lo padre ou formado em direito, e neste sentido procura encaminhá-lo, livrando-o de qualquer necessidade de ganhar a vida. Por isso, nunca aparece seriamente o problema da subsistência, mesmo quando Leonardo passa de raspão e quase como jogo pelo serviço das cozinhas reais, o que o aproximaria vagamente da condição de pícaro no sentido acima referido.
Semelhante a vários pícaros, ele é amável e risonho, espontâneo nos atos e estreitamente aderente aos fatos, que o vão rolando pela vida. Isto o submete, como a eles, a uma espécie de causalidade externa, de motivação que vem das circunstâncias e torna o personagem um títere, esvaziado de lastro psicológico e caracterizado apenas pelos solavancos do enredo. O sentimento de um destino que motiva a conduta é vivo nas Memórias, onde a Comadre se refere à sina que acompanha o afilhado, acumulando contratempos e desmanchando a cada instante as combinações favoráveis.
Como os pícaros, ele vive um pouco ao sabor da sorte, sem plano nem reflexão; mas ao contrário deles nada aprende com a experiência. De fato, um elemento importante da picaresca é essa espécie de aprendizagem que amadurece e faz o protagonista recapitular a vida à luz de uma filosofia desencantada. Mais coerente com a vocação de fantoche, Leonardo nada conclui, nada aprende; e o fato de ser o livro narrado na terceira pessoa facilita esta inconsciência, pois cabe ao narrador fazer as poucas reflexões morais, no geral levemente cínicas e em todo o caso otimistas, ao contrário do que ocorre com o sarcasmo ácido e o relativo pessimismo dos romances picarescos. O malandro espanhol termina sempre, ou numa resignada mediocridade, aceita como abrigo depois de tanta agitação, ou mais miserável do que nunca, no universo do desengano e da desilusão, que marca fortemente a literatura espanhola do Século de Ouro.
Curtido pela vida, acuado e batido, ele não tem sentimentos, mas apenas reflexos de ataque e defesa. Traindo os amigos, enganando os patrões, não tem linha de conduta, não ama e, se vier a casar, casará por interesse, disposto inclusive às acomodações mais foscas, como o pobre Lazarillo. O nosso Leonardo, embora desprovido de paixão, tem sentimentos mais sinceros neste terreno, e em parte o livro é a história do seu amor cheio de obstáculos pela sonsa Luisinha, com quem termina casado, depois de promovido, reformado e dono de cinco heranças que lhe vieram cair nas mãos sem que movesse uma palha. Não sendo nenhum modelo de virtude, é leal e chega a comprometer-se seriamente para não lesar o malandro Teotônio. Um antipícaro, portanto, nestas e outras circunstâncias, como a de não procurar e não agradar os "superiores", que constituem a meta suprema do malandro espanhol.
Se o protagonista for assim, é de esperar que o livro, tomado no conjunto, apresente a mesma oscilação de algumas analogias e muitas diferenças em relação aos romances picarescos.
Estes são dominados pelo senso do espaço físico e social, pois o pícaro anda por diversos lugares e entra em contacto com vários grupos e camadas, não sendo raros os destinos internacionais, como o do "galego-romano" Estebanillo. O fato de ser um aventureiro desclassificado se traduz pela mudança de condição, cujo tipo elementar, estabelecido no primeiro em data, o Lazarillo de Tormes, é a mudança de patrões. Criado de mendigo, criado de escudeiro pobre, criado de padre, o pequeno vagabundo percorre a sociedade, cujos tipos vão surgindo e se completando, de maneira a tornar o livo uma sondagem dos grupos sociais e seus costumes -, coisa que prosseguiu na tradição do romance picaresco, fazendo dele um dos modelos da ficção realista moderna. Embora defomado pelo ângulo satírico, o seu ponto de vista descobre a sociedade na variação dos lugares, dos grupos, das classes -, estas, vistas freqüentemente das inferiores para as superiores, em obediência ao sentido da eventual ascensão do pícaro. Nessa lenta panorâmica, um moralismo corriqueiro para terminar, mas pouca ou nenhuma intenção realmente moral, apesar dos protestos constantes com que o narrador procura dar um cunho exemplar às suas malandragens. E em relação às mulheres, acentuada misoginia. Embora não sejam licenciosos, como também não são sentimentais, os romances picarescos são freqüentemente obscenos e usam à vontade o palavrão, em correspondência com os meios descritos.
O livro de Manuel Antônio é de vocabulário limpo, não tem qualquer baixeza de expressão e, quando entra pela zona da licenciosidade, é discreto, ou de tal modo caricatural que o elemento irregular se desfaz em bom humor -, como é notadamente o caso da seqüência que narra o infortúnio do padre surpreendido em trajes menores no quarto da Cigana. Mas vimos que tem uma certa tintura de sentimento amoroso, apesar de descrito com ironia oportuna; e a sátira, visível por todo ele, nunca abrange o conjunto da sociedade, pois ao contrário da picaresca o seu campo é restrito.
2. Romance malandro
Digamos então que Leonardo não é um pícaro, saído da tradição espanhola; mas o primeiro grande malandro que entra na novelística brasileira, vindo de uma tradição quase folclórica e correspondendo, mais do que se costuma dizer, a certa atmosfera cômica e popularesca de seu tempo, no Brasil. Malandro que seria elevado à categoria de símbolo por Mário de Andrade em Macunaíma (4) e que Manuel Antônio com certeza plasmou espontaneamente, ao aderir com a inteligência e a afetividade ao tom popular das histórias que, segundo a tradição, ouviu de um companheiro de jornal, antigo sargento comandado pelo major Vidigal de verdade.
O malandro, como o pícaro, é espécie de um gênero mais amplo de aventureiro astucioso, comum a todos os folclores. Já notamos, com efeito, que Leonardo pratica a astúcia pela astúcia (mesmo quando ela tem por finalidade safá-lo de uma enrascada), manifestando um amor pelo jogo-em-si que o afasta do pragmatismo dos pícaros, cuja malandragem visa quase sempre ao proveito ou a um problema concreto, lesando freqüentemente terceiros na sua solução. Essa gratuidade aproxima "o nosso memorando" do trickster imemorial, até de suas encarnações zoomórficas - macaco, raposa, jabuti -, dele fazendo, menos um "anti-herói" do que uma criação que talvez possua traços de heróis populares, como Pedro Malasarte. É admissível que modelos eruditos tenham influído em sua elaboração; mas o que parece predominar no livro é o dinamismo próprio dos astuciosos de história popular. Por isso, Mário de Andrade estava certo ao dizer que nas Memórias não há realismo em sentido moderno; o que nelas se acha é algo mais vasto e intemporal, próprio da comicidade popularesca.
Esta costela originalmente folclórica talvez explique certas manifestações de cunho arquetípico -, inclusive o começo pela frase padrão dos contos da carochinha: "Em no tempo do Rei". Ao mesmo universo pertenceria a constelação de fadas boas (Padrinho e Madrinha) e a espécie de fada agourenta que é a Vizinha, todos cercando o berço do menino e servindo aos desígnios da sorte, a "sina" invocada mais de uma vez no curso da narrativa. Pertenceria também o anonimato de vários personagens, importantes e secundários, designados pela profissão ou a posição no grupo, o que de um lado os dissolve em categorias sociais típicas, mas de outro os aproxima de paradigmas lendários e da indeterminação da fábula, onde há sempre "um rei", "um homem", "um lenhador", "a mulher do soldado" etc. Pertenceria, ainda, o major Vidigal, que por baixo da farda historicamente documentada é uma espécie de bicho-papão, devorador da gente alegre. Pertenceria, finalmente, a curiosa duplicação que estabelece dois protagonistas, Leonardo Pai e Leonardo Filho, não apenas contrastando com a forte unidade estrutural dos anti-heróis picarescos (ao mesmo tempo nascedouros e alvos da narrativa), mas revelando mais um laço com os modelos populares.
Com efeito, pai e filho materializam as duas faces do trickster: a tolice, que afinal se revela salvadora, e a esperteza, que muitas vezes redunda em desastre, ao menos provisório. Sob este aspecto, o meirinho meio bobo que acaba com a vida em ordem, e seu filho esperto que por pouco se enrosca, seriam uma espécie de projeção invertida, no plano das aventuras, da família didática de Bertoldo, que Giulio Cesare Della Croce e seguidores popularizaram a partir da Itália desde o século XVI, inspirados em remotas fontes orientais. Não custa dizer que nos catálogos de livraria do tempo de Manuel Antônio aparecem várias edições e arranjos da famosa trempe, como: Astúcias de Bertoldo; Simplicidadesde Bertoldinho, filho do sublime e astuto Bertoldo, e agudas respostas de Marcolfa, sua mãe; Vida de Cacasseno, filho do simples Bertoldinho e neto do astuto Bertoldo. Nas Memórias de um sargento de milícias, livro culto e ligado apenas remotamente a arquétipos folclóricos, simplório é o pai e esperto é o filho, não havendo além disso qualquer vestígio de adivinhação gnômica, própria da série dos Bertoldos e d'A Donzela Teodora, outra sabe-tudo muito viva em nosso populário.
Como não há motivo para contestar a tradição, segundo a qual a matéria do livro foi dada, ao menos em parte, pelos relatos de um velho sargento de polícia, (5) podemos admitir que o primeiro nível de estilização consistiu, da parte do romancista, em extrair dos fatos e das pessoas um certo elemento de generalidade, que os aproximou dos paradigmas subjacentes às narrativas folclóricas. Assim, por exemplo, um determinado oficial de justiça, chamado ou não Leonardo Pataca, foi desbastado, simplificado, reordenado e submetido a uma cunhagem fictícia, que o afastou da sua carne e do seu osso, para transformá-lo em ocorrência particular do amoroso desastrado e, mais longe, do bobalhão universal das piadas. Noutras palavras, a operação inicial do ficcionista teria consistido em reduzir os fatos e os indivíduos a situações e tipos gerais, provavelmente porque o seu caráter popular permitia lançar uma ponte fácil para o universo do folclore, fazendo a tradição anedótica assumir a solidez das tradições populares.
Poderíamos, então, dizer que a integridade das Memórias é feita pela associação íntima entre um plano voluntário (a representação dos costumes e cenas do Rio) e um plano talvez na maior parte involuntário (traços semi-folclóricos, manifestados sobretudo no teor dos atos e das peripécias). Como ingrediente, um realismo espontâneo e corriqueiro, mas baseado na intuição da dinâmica social do Brasil na primeira metade do século XIX. E nisto reside provavelmente o segredo da sua força e da sua projeção no tempo.
Há também, é claro, eventuais influências eruditas e traços que o aparentam às correntes literárias que, naquele momento, formavam com as tendências peculiares ao Romantismo um desenho mais complicado do que parece a quem ler as classificações esquemáticas. Por este lado é que ele se entronca em linhas de força da literatura brasileira de então, que o esclarecem tanto ou mais do que a invocação de modelos estrangeiros e mesmo de um substrato popularesco.
De fato, para compreender um livro como as Memórias convém lembrar a sua afinidade com a produção cômica e satírica da Regência e primeiros anos do Segundo Reinado -, no jornalismo, na poesia, no desenho, no teatro. Escritas de 1852 a 1853, elas seguem uma tendência manifestada desde o decênio de1830, quando começam a florescer jornalzinhos cômicos e satíricos, como O Carapuceiro, do Padre Lopes Gama (1832-34; 1837-43; 1847) e O Novo Carapuceiro, de Gama e Castro (1841-42). Ambos se ocupavamm de análise política e moral por meio da sátira dos costumes e retratos de tipos característicos, dissolvendo a individualidade na categoria, como tende a fazer Manuel Antônio. Esta linha que vem de La Bruyère, mas também do nosso velho poema cômico, sobretudo do exemplo de Nicolau Tolentino, manifestava-se ainda na verdadeira mania do retrato satírico, descrevendo os tipos da vida quotidiana, que, sob o nome de "fisiologia"(por "psicologia"), pupulou na imprensa francesa entre 1830 e 1850 e dela passou à nossa. Embora Balzac a tenha cultivado com grande talento, não é preciso recorrer à sua influência, como faz um estudioso recente(6), para encontrar a fonte eventual de uma moda que era pão quotidiano dos jornais.
Pela mesma altura, surge a caricatura política, nos primeiros desenhos de Araújo Porto-Alegre (1837) (7), e de 1838 a 1849 desenvolve-se a atividade de Martins Pena, cuja concepção da vida e da composição literária se aproxima da de Manuel Antônio -, com a mesma leveza de mão, o mesmo sentido penetrante dos traços típicos, a mesma suspensão de juízo moral. O amador de teatro que foi o nosso romancista não poderia ter ficado à margem de uma tendência tão bem representada; e que apareceria ainda, modestamente, na obra novelística e teatral de Joaquim Manuel de Macedo, cheia de infra-realismo e caricatura.
Os próprios poetas, que hoje consideramos uma série plangente de carpidores, fizeram poesia cômica, obscena e maluca, por vezes com bastante graça, como Laurindo Rabelo e Bernardo Guimarães, cujas produções neste setor chegaram até nós. Álvares de Azevedo foi poeta divertido, e alguns retardatários mantinham a tradição bem humorada da velha sátira social, como é o caso d'A festa de Baldo (1847), de Álvaro Teixeira de Macedo, cuja linguagem enferrujada não abafa inteiramente um discernimento saboroso dos costumes provincianos.
3. Romance documentário?
Dizer que o livro de Manuel Antônio de Almeida é eminentemente documentário, sendo reprodução fiel da sociedade em que a ação se desenvolve, talvez seja formular uma segunda petição de princípio -, pois restaria provar, primeiro, que reflete o Rio joanino; segundo, que a este reflexo deve o livro a sua característica e o seu valor.
O romance de tipo realista, arcaico ou moderno, comunica sempre uma certa visão da sociedade, cujo aspecto e significado procura traduzir em termos de arte. É mais duvidoso que dê uma visão informativa, pois geralmente só podemos avaliar a fidelidade da representação através de comparações com os dados que tomamos a documentos de outro tipo. Isto posto, resta o fato que o livro de Manuel Antônio sugere a presença viva de uma sociedade que nos parece bastante coerente e existente, e que ligamos à do Rio de Janeiro do começo do século XIX, tendo Astrojildo Pereira chegado a compará-lo às gravuras de Debret, como força representativa (8).
No entanto, o panorama que ele traça não é amplo. Restrito espacialmente, a sua ação decorre no Rio, sobretudo no que são hoje as áreas centrais e naquele tempo constituíam o grosso da cidade. Nenhum personagem deixa o seu âmbito e apenas uma ou duas vezes o autor nos leva ao subúrbio, no episódio do Caboclo do Mangue e na festa campestre da família de Vidinha.
Também socialmente a ação é circunscrita a um tipo de gente livre modesta, que hoje chamaríamos pequena burguesia. Fora daí, há uma senhora rica, dois padres, um chefe de polícia e, bem de relance, um oficial superior e um fidalgo, através dos quais vislumbramos o mundo do Paço. Este mundo novo, despencado recentemente na capital pacata do Vice-Reinado, era então a grande novidade, com a presença do rei e dos ministros, a instalação cheia de episódios entre pitorescos e odiosos de uma nobreza e uma burocracia transportadas nos navios da fuga, entre máquinas e caixotes de livros. Mas dessa nota viva e saliente, nem uma palavra; é como se o rio continuasse a ser a cidade do vice-rei Luis de Vasconcelos e Sousa.
Havia, porém, um elemento mais antigo e importante para o quotidiano, que formava a maior parte da população e sem o qual não se vivia: os escravos. ora, como nota Mário de Andrade, não há 'gente de cor", no livro -, salvo as baianas da procissão dos Ourives, mero elemento decorativo, e as crias da casa de Dona Maria, mencionadas de passagem para enquadrar o Mestre de Reza. Tratado como personagem, apenas o pardo livre Chico-Juca, representante da franja de desordeiros e marginais que formavam boa parte da sociedade brasileira.
Documentário restrito, pois, que ignora as camadas dirigentes, de um lado, as camadas básicas, de outro. Mas talvez o problema deva ser proposto noutros termos, sem querer ver a ficção como duplicaçào -, atitude freqüente na crítica naturalista que tem inspirado a maior parte dos comentários sobre as Memórias, e que tinha do realismo uma concepção que se qualificaria de mecânica.
Na verdade, o que interessa à análise literária é saber, neste caso, qual a função exercida pela realidade social historicamente localizada para constituir a estrutura da obra -, isto é, um fenômeno que se poderia chamar de formalização ou redução estrutural dos dados externos.
Para isso, devemos começar verificando que o romance de Manuel Antônio de Almeida é constituído por alguns veios descontínuos, mas discerníveis, arranjados de maneira cuja eficácia varia: (1) os fatos narrados, envolvendo os personagens; (2) os usos e costumes descritos; (3) as observações judicativas do narrador e de certos personagens. Quando o autor os organiza de modo integrado, o resultado é satisfatório e nós podemos sentir a realidade. Quando a integração é menos feliz, parece-nos ver uma justaposição mais ou menos precária de elementos não suficientemente fundidos, embora interessantes e por vezes encantadores como quadros isolados. Neste último caso é que os usos e costumes aparecem como documento, prontos para a ficha dos folcloristas, curiosos e praticantes da petite histoire.
É o que ocorre, por exemplo, no capítulo 17 da 1ª Parte, "Dona Maria", onde reina a desintegração dos elementos constitutivos. Temos nele uma descrição de costumes (procissão dos Ourives); o retrato físico e moral de um novo personagem, que dá nome ao capítulo; e a ação presente, que é o debate sobre o menino Leonardo, com participação de Dona Maria, do Compadre, da Vizinhança. Apesar de interessante, tudo nele está desconexo. A procissão descrita previamente como foco autônomo de interesse não é a procissão-fato, isto é, uma determinada procissão, concreta, localizada, pormenorizada e fazendo parte da narrativa. Embora se vincule à ação presente, ela só aparece um instante, no fim; o que domina o capítulo é a procissão-uso, a procissão indeterminada, com o caráter de informe pitoresco, do tipo daqueles que geralmente se consideram como constituindo a força de Manuel Antônio, quando na verdade são o ponto fraco da sua composição.
Mas se recuarmos até o capítulo 15 da mesma parte, veremos coisa diversa. Trata-se da "Estralada", a divertida festa de aniversário da Cigana, que Leonardo Pai atrapalha, pagando o capoeira Chico-Juca para estabelecer a desordem e denunciando tudo previamente ao Vidigal, que intervém e torna público o pecado do Mestre de Cerimônias.
Neste capítulo surge mais de um elemento documentário, inclusive a capoeiragem, associada ao retrato físico e moral do capoeira e a uma seqüência de fatos. Mas aí o documento não existe em si, como no caso anterior: é parte constitutiva da ação, de maneira que nunca parece que o autor esteja informando ou desviando a nossa atenção para um traço da sociedade. Dentro das normas tradicionais de composição, a que obedece Manuel Antônio, o segundo caso está certo; o primeiro, senão errado, imperfeito, por motivos de natureza estrutural.
A força de convicção do livro depende pois essencialmente de certos pressupostos de fatura, que ordenam a camada superficial dos dados. Estes precisam ser encarados como elementos de composição, não como informes proporcionados pelo autor, pois neste caso estaríamos reduzindo o romance a uma série de quadros descritivos dos costumes do tempo.
O livro de Manuel Antônio correu este risco. O critério sugerido acima permite lê-lo de modo esclarecedor, mostrando que talvez se tenha ido consolidando como romance à medida que deixava de ser uma coleção de tipos curiosos e usos pitorescos, que predominam na metade inicial. É possível e mesmo provável que a redação tenha sido feita aos poucos, para atender à publicação seriada; (9) e que o senso da unidade fosse aumentando progressivamente, à medida que a linha mestra do destino do "memorando" se consolidava, emergindo da poeira anedótica. Por isso, a primeira metade tem mais o aspecto de crônica, enquanto a segunda é mais romance, fortalecendo a anterior, preservando o colorido e o pitoresco da vida popular, sem situá-la, todavia, num excessivo primeiro plano.
Esta dualidade de etapas (que são como duas ordens narrativas coexistentes) fica esclarecida se notarmos que na primeira metade Leonardo Filho ainda não se desprendeu da nebulosa dos demais personagens e que o romance pode ser considerado como tendo ele e o pai por principais figurantes. Os fatos relativos a um e outro, mais aos personagens que estão agregados diretamente a eles, correm como paralelas alternadas, enquanto a partir do capítulo 28 a linha do filho domina absolutamente e a narrativa, superando as descrições estáticas, amaina a inclusão freqüente de usos e costumes, dissolvendo-os na dinâmica dos acontecimentos.
Sendo assim, é provável que a impressão de realidade comunicada pelo livro não venha essencialmente dos informes, aliás relativamente limitados, sobre a sociedade carioca do tempo do Rei Velho. Decorre de uma visão mais profunda, embora instintiva, da função, ou "destino" das pessoas nessas sociedades; tanto assim que o real adquire plena força quando é parte integrante do ato e componente das situações. Manuel Antônio, apesar da sua singeleza, tem uma coisa em comum com os grandes realistas: a capacidade de intuir, além dos fragmentos descritos, certos princípios constitutivos da sociedade -, elemento oculto que age como totalizador dos aspectos parciais.
4. Romance representativo
A natureza popular das Memórias de um sargento de milícias é um dos fatores do seu alcance geral e, portanto, da eficiência e durabilidade com que atua sobre a imaginação dos leitores. Esta reage quase sempre ao estímulo causado por situações e personagens de cunho arquetípico, dotados da capacidade de despertar ressonância. Mas além deste tipo de generalidade, há outro que o reforça e ao mesmo tempo determina, restringindo o seu sentido e tornando-o mais adequado ao âmbito específico do Brasil. Noutras palavras: há no livro um primeiro estrato universalizador, onde fermentam arquétipos válidos para a imaginação de um amplo ciclo de cultura, que se compraz nos mesmos casos de tricksters ou nas mesmas situações nascidas do capricho da "sina"; e há um segundo estrato universalizador de cunho mais restrito, onde se encontram representações da vida capazes de estimular a imaginação de um universo menor dentro deste ciclo: o brasileiro.
Nas Memórias, o segundo estrato é constituído pela dialética da ordem e da desordem, que manifesta concretamente as relações humanas no plano do livro, do qual forma o sistema de referência. O seu caráter de princípio estrutural, que gera o esqueleto de sustentação, é devido à formalização estética de circunstâncias de caráter social profundamente significativas como modos de existências que por isso contribuem para atingir essencialmente os leitores.
Esta afirmativa só pode ser esclarecida pela descrição do sistema de relações dos personagens, que mostra: (1) a construção, na sociedade descrita pelo livro, de uma ordem comunicando-se com uma desordem que a cerca de todos os lados; (2) a sua correspondência profunda, muito mais que documentária, a certos aspectos assumidos pela relação entre a ordem e a desordem na sociedade brasileira da primeira metade do século XIX.
Veremos então que, embora elementares como concepção de vida e caracterização dos personagens, as Memórias são um livro agudo como percepção das relações humanas tomadas em conjunto. Se não teve consciência nítida, é fora de dúvida que o autor teve maestria suficiente para organizar um certo número de personagens segundo intuições adequadas da realidade social.
Tomemos como base o personagem central do livro, Leonardo Filho, imaginando que ocupa no respectivo espaço uma posição também central; à direita está sua mãe, à esquerda seu pai, os três no mesmo plano. Com um mínimo de arbítrio podemos dispor os demais personagens, mesmo alguns vagos figurantes, acima e abaixo desta linha equatorial por eles formada. Acima estão os que vivem segundo as normas estabelecidas, tendo no ápice o grande representante delas, major Vidigal; abaixo estão os que vivem em oposição ou pelo menos integração duvidosa em relação a elas. Poderíamos dizer que há, deste modo, um hemisfério positivo da ordem e um hemisfério negativo da desordem, funcionando como dois ímãs que atraem Leonardo, depois de terem atraído seus pais. A dinâmica do livro pressupõe uma gangorra dos dois pólos, enquanto Leonardo vai crescendo e participando ora de um, ora de outro, até ser finalmente absorvido pelo pólo convencionalmente positivo.
Sob este aspecto, pai, mãe e filho são três nódulos de relações, positivas (pólo da ordem) e negativas (pólo da desordem), sendo que os dois primeiros constituem uma espécie de prefiguração do destino do terceiro. Leonardo Pataca, o pai, faz parte da ordem, como oficial de justiça; e apesar de ilegítima, sua relação com Maria da Hortaliça é habitual e quase normal segundo os costumes do tempo e da classe. Mas depois de abandonado por ela, entra num mundo suspeito por causa do amor pela Cigana, que o leva às feitiçarias proibidas do Caboclo do Mangue, onde o major Vidigal o surpreende para metê-lo na cadeia. Ainda por causa da Cigana promove o sarilho em sua festa, contratando o desordeiro Chico-Juca, o que motiva nova intervenção de Vidigal e expõe a vergonha pitoresca de um padre, o Mestre de Cerimônias. Mais tarde a Cigana passa a viver com Leonardo Pataca, até que finalmente, já maduro, ele forme com a filha da Comadre, Chiquinha, um casal estável, embora igualmente desprovido de bênção religiosa, como (repitamos) podia ser quase normal naquele tempo entre as camadas modestas. Assim, Leonardo Pai, representante da ordem, desce a sucessivos círculos da desordem e volta em seguida a uma posição relativamente sancionada, tangido pelas intervenções pachorrentas e brutais do major Vidigal -, personagem que existiu e deve ter sido fundamental numa cidade onde, segundo um observador da época, "há que evitar sair sozinho à noite e ser mais atento à sua segurança do que em qualquer outra parte, porque são freqüentes os roubos e crimes, apesar de a polícia ser lá tão encontradiça como areia do mar". (10)
A vida de Leonardo Filho será igualmente uma oscilaçao entre os dois hemisférios, com maior variedade de situações.
Se analisarmos o sistema de relações em que está envolvido, veremos primeiro a atuação dos que procuram encaminhá-lo para a ordem: seu padrinho, o Compadre; sua madrinha, a Comadre. Através deles, entra em contacto com uma senhora bem posta na vida, Dona Maria, que se liga por sua vez a um próspero intrigante, José Manuel, acolitado pelo cego que ensina doutrina às crianças, o Mestre de Reza; que se liga sobretudo à sobrinha Luisinha, herdeira abastada e futura mulher de Leonardo, depois de um primeiro casamento com o dito José Manuel. Estamos no mundo das alianças, das carreiras, das heranças, da gente de posição definida; em nível modesto, o Padrinho barbeiro e a Vizinha; em nível mais elevado, Dona Maria. Todos estão do lado positivo que a polícia respeita e cujas festas o major Vidigal não vai rondar.
Vista deste ângulo, a história de Leonardo Filho é a velha história do herói que passa por diversos riscos até alcançar a felicidade, mas expressa segundo uma constelação social peculiar, que a transforma em história do rapaz que oscila entre a ordem estabelecida e as condutas transgressivas, para finalmente integrar-se na primeira, depois de provido da experiência das outras. O cunho especial do livro consiste numa certa ausência de juízo moral e na aceitação risonha do "homem como ele é", mistura de cinismo e bonomia que mostra ao leitor uma relativa equivalência entre o universo da ordem e o da desordem; entre o que se poderia chamar convencionalmente o bem e o mal.
Na construção do enredo esta circunstância é representada objetivamente pelo estado de espírito com que o narrador expõe os momentos de ordem e de desordem, que acabam igualmente nivelados ante um leitor incapaz de julgar, porque o autor retirou qualquer escala necessária para isto. Mas há algo mais profundo, que ampara as camadas superficiais de interpretação: a equivalência da ordem e da desordem na própria economia do livro, como se pode verificar pela descrição das situações e das relações. Tomemos apenas dois exemplos.
Leonardo gosta de Luisinha desde menino, desde o belo episódio do "Fogo no Campo', quando vê o seu rostinho acanhado de roceira transfigurado pela emoção dos rojões coloridos. Mas como as circunstâncias (ou, nos termos do livro, a "sina") a afastam dele para o casamento convencional com José Manuel, ele, sem capacidade de sofrer (pois ao contrário do que diz o narrador não tem a fibra amorosa do pai), passa facilmente a outros amores e à encantadora Vidinha. Esta lembra, pela espontaneidade dos costumes, a moreninha "amigada" com o tropeiro, que amenizou a estadia do mercenário alemão Schlichthorst no Rio daquele tempo, cantando modinhas sentada na esteira, junto com a mãe complacente(11).
Luisinha e Vidinha constituem um par admiravelmente simétrico. A primeira, no plano da ordem, é a mocinha burguesa com quem não há relação viável fora do casamento, pois ela traz consigo herança, parentela, posição e deveres. Vidinha, no plano da desordem, é a mulher que se pode apenas amar, sem casamento nem deveres, porque nada conduz além da sua graça e da sua curiosa família sem obrigação nem sanção, onde todos se arrumam mais ou menos conforme os pendores do instinto e do prazer. É durante a fase dos amores com Vidinha, ou logo após, que Leonardo se mete nas encrencas mais sérias e pitorescas, como que libertado dos projetos respeitáveis que o padrinho e a madrinha tinham traçado para a sua vida.
Ora, quando o "destino"o reaproxima de Luisinha, providencialmente viúva, e ele retoma o namoro que levará direto ao casamento, notamos que a tonalidade do relato não fica mais aprovativa e, pelo contrário, que as seqüências de Vidinha têm um encanto mais cálido. Como Leonardo, o narrador parece aproximar-se do casamento com a devida circunspecção, mas sem entusiasmo.
Nessa altura, comparamos a situação com tudo o que sabemos dos seres no universo do livro e não podemos deixar de fazer uma extrapolação. Dada a estrutura daquela sociedade, se Luisinha pode vir a ser uma esposa fiel e caseira, o mais provável é que Leonardo siga a norma dos maridos e, descendo alegremente do hemisfério da ordem, refaça a descida pelos círculos da desordem, onde o espera aquela vidinha ou outra equivalente, para juntos formarem um casal suplementar, que se desfará em favor de novos arranjos, segundo os costumes da família brasileira tradicional. Ordem e desordem, portanto, extremamente relativas, se comunicam por caminhos inumeráveis, que fazem do oficial de justiça um empreiteiro de arruaças, do professor de religião um agente de intrigas, do pecado do Cadete a mola das bondades do Tenente-Coronel, das uniões ilegítimas situações honradas, dos casamentos corretos negociatas escusas.
"Tutto nel mondo è burla'-, cantam Falstaff e o coro, para resumir as confusões e peripécias no final da ópera de Verdi. "Tutto nel mondo è burla", parece dizer o narrador das Memórias de um sargento de milícias, romance que tem traços de ópera bufa. Tanto assim (e chegamos ao segundo exemplo), que a conclusão feliz é preparada por uma atitude surpreendente do major Vidigal, que no livro é a encarnação da ordem, sendo manifestação de uma consciência exterior, única prevista no seu universo. De fato, a ordem convencional a que obedecem os comportamentos, mas a que no fundo permanecem indiferentes as consciências, é aqui mais do que em qualquer outro lugar o policial na esquina, isto é, Vidigal, com a sua sisudez, seus guardas, sua chibata e seu relativo fair-play.
Ele é delegado de um mundo apenas entrevisto durante a narrativa, quando a Comadre sai a campo para obter a soltura de Leonardo Pataca. Como todos sabem, vai pedir a proteção do Tenente-Coronel, membro da guarda caricata de velhos oficiais, que cochilam numa sala do Palácio Real. O Tenente-Coronel por sua vez busca o empenho do Fidalgo (que vive com o seu capote e os seus tamancos numa casa fria e mal guarnecida), para que este fale ao Rei. O Rei, que não aparece mas sobrepaira como fonte de tudo, é que falará com Vidigal, instrumento da sua vontade. Mais do que um personagem pitoresco, Vidigal encarna toda a ordem; por isso, na estrutura do livro é um fecho de abóboda e, sob o aspecto dinâmico, a única força reguladora de um mundo solto, pressionando de cima para baixo e atingindo um por um os agentes da desordem. Ele prende Leonardo Pai na casa do Caboclo e o Mestre de Cerimônias na da Cigana. Ele ronda o baile do batizado de Leonardo Filho e intervém muitos anos depois na festa de aniversário de seu irmão, conseqüência de novos amores do pai. Ele persegue Teotônio, desmancha o piquenique de Vidinha, atropela o Toma-Largura, persegue e depois prende Leonardo Filho, fazendo-o sentar praça na tropa. O seu nome faz tremer e fugir.
Sendo assim, quando a Comadre resolve obter o perdão do afilhado é a Vidigal que pensa recorrer, por meio de uma nova série de mediações muito significativas dessa dialética da ordem e da desordem que se está procurando sugerir. Modesta socialmente, enredeira e complacente, reforça-se procurando a próspera Dona Maria, que seria empenho forte para o representante da lei, sempre accessível aos proprietários bem situados. Mas Dona Maria vira habilmente o leme para outra banda e recorre a uma senhora de costumes que haviam sido fáceis, como se dizia quando eles ainda eram difíceis. E é com a pura ordem de um lado, encarnada em Dona Maria, e de outro a desordem feita ordem aparente, encarnada em sua pitoresca xará Maria Regalada, que a Comadre parte para assaltar a cidadela ríspida, o Tutu geral, o desmancha prazeres do Major.
A cena é digna de um tempo que produziu Martins Pena. Toda a gente lembra de que modo, para surpresa do leitor, Vidigal é declarado "babão" e se desmancha de gosto entre as saias das três velhotas. Como resistisse, enfronhado na intransigência dos oficiais conscienciosos, Maria Regalada o chama de lado e lhe segreda qualquer coisa, com certeza alusiva a alguma relação apetitosa no passado, quem sabe com possibilidades de futuro. A fortaleza da ordem vem abaixo ato contínuo e não apenas solta Leonardo, mas dá-lhe o posto de sargento, que aparecerá no título do romance e com o qual, já rformado na segunda linha, casará triunfalmente com Luisinha, enfeixando cinco heranças para dar maior solidez à sua posição no hemisfério positivo.
Posição de tal modo firme, que poderá, como sugerimos, baixar eventualmente ao mundo agradável da desordem, agora com o exemplo supremo do major Vidigal, que cedeu ao pedido de uma dama galante apoiada por uma dama capitalista, em suave conluio dos dois hemisférios, por iniciativa de uma terceira dama, que circula livremente entre ambos e poderia ser chamar, como Belladona no poema de Eliot, "the lady of situations". Ordem e desordem se articulam portanto solidamente; o mundo hierarquizado na aparência se revela essencialmente subvertido, quando os extremos se tocam e a habilidade geral dos personagens é justificada pelo escorregão que traz o major das alturas sancionadas da lei para complacências duvidosas com as camadas que ele reprime sem parar.
Há um traço saboroso que funde no terreno do símbolo essas confusões de hemisférios e esta subversão final de valores. Quando as mulheres chegam à sua casa (Dona Maria na cadeirinha, as outras se esbofando ao lado), o major aparece de chambre de chita e tamancos, num desmazelo que contradiz o seu aprumo durante o curso da narrativa. Atarantado com a visita, desfeito em risos e arrepios de erotismo senil, corre para dentro e volta envergando a casaca do uniforme, devidamente abotoada e luzindo em seus galões, mas com as calças domésticas e os mesmos tamancos batendo no assoalho. E assim temos o nosso ríspido dragão da ordem, a consciência ética do mundo, reduzido a imagem viva dos dois hemisférios, porque nesse momento em que transgride as suas normas ante a sedução da antiga e talvez de novo amante, está realmente equiparado a qualquer dos malandros que perseguia: aos dois Leonardos, a Teotônio, ao Toma-Largura, ao Mestre de Cerimônias. Como este, que, ao aparecer contraditoriamente de solidéu e ceroulas no quarto da Cigana, misturava em signos burlescos a majestade da Igreja e as doçuras do pecado, ele agora é farda da cintura para cima, roupa caseira da cintura para baixo -, encouraçando a razão nas bitolas da lei e desafogando o plexo solar nas indisciplinas amáveis.
Este traço dá o sentido profundo do livro e do seu balanceio caprichoso entre ordem e desordem. Tudo se arregla então num plano mais significativo que o das normas convencionais; e nós lembramos que o bom, o excelente padrinho, se "arranjou" na vida perjurando, traindo a palavra dada a um moribundo, roubando aos herdeiros o ouro que o mesmo lhe confiara. Mas este ouro não serviu para ele se tornar um cidadão honesto e, sobretudo, prover Leonardo? "Tutto nel mondo è burla".
É burla e é sério, porque a sociedade que formiga nas Memórias é sugestiva, não tanto por causa das descrições de festejos ou indicações de usos e lugares; mas porque manifesta num plano mais fundo e eficiente o referido jogo dialético da ordem e da desordem, funcionando como correlativo do que se manifestava na sociedade daquele tempo. Ordem dificilmente imposta e mantida, cercada de todos os lados por uma desordem vivaz, que antepunha vinte mancebias a cada casamento e mil uniões fortuitas a cada mancebia. Sociedade na qual uns poucos livres trabalhavam e os outros flauteavam ao Deus dará, colhendo as sobras do parasitismo, dos expedientes, das munificiências, da sorte ou do roubo miúdo. Suprimindo o escravo, Manuel Antônio suprimiu quase totalmente o trabalho; suprimindo as classes dirigentes, suprimiu os controles do mando. Ficou o ar de jogo dessa organização bruxuleante fissurada pela anomia, que se traduz na dança dos personagens entre lícito e ilícito, sem que possamos afinal dizer o que é um e o que é o outro, porque todos acabam circulando de um para outro com uma naturalidade que lembra o modo de formação das famílias, dos prestígios, das fortunas, das reputações, no Brasil urbano da primeira metade do século XIX. Romance profundamente social, pois, não por ser documentário, mas por ser construído segundo o ritmo geral da sociedade, vista através de um dos seus setores. E sobretudo porque dissolve o que há de sociologicamente essencial nos meandros da construção literária.
Com efeito, não é a representação dos dados concretos particulares que poduz na ficção o senso da realidade; mas sim a sugestão de uma certa generalidade, que olha para os dois lados e dá consistência tanto aos dados particulares do real quanto aos dados particulares do mundo fictício. No esquema abaixo, sejam OD o fenômeno geral da ordem e da desordem, como foi indicado; AB os fatos particulares quaisquer da sociedade joanina do Rio; A'B' os fatos particulares quaisquer da sociedade descrita nas Memórias:

OD, dialética da ordem e da desordem, é um princípio válido de generalização, que organiza em profundidade tanto AB quanto A'B', dando-lhes inteligibilidade, sendo ao mesmo tempo real e fictício -, dimensão comum onde ambos se encontram, e que explica tanto um quanto outro. A'B' não vem diretamente de AB, pois o sentimento da realidade na ficção pressupõe o dado real mas não depende dele. Depende de princípios mediadores, geralmente ocultos, que estruturam a obra e graças aos quais se tornam coerentes as duas séries, a real e a fictícia.
Neste ponto, percebemos que a estrutura do livro sofre a tensão das duas linhas que constituem a visão do autor e se traduzem em duas direções narrativas, interrelacionadas de maneira dinâmica. De um lado, o cunho popular introduz elementos arquetípicos, que trazem a presença do que há de mais universal nas culturas, puxando para a lenda e o irreal, sem discernimento da situação histórica particular. De outro lado, a percepção do ritmo social puxa para a representação de uma sociedade concreta, historicamente delimitada, que ancora o livro e intensifica o seu realismo infuso. Ao realismo incaracterístico e conformista da sabedoria e da irreverência popular, junta-se o realismo da observação social do universo descrito.
Talvez fosse possível dizer que a característica peculiar das Memórias seja devida a uma contaminação recíproca da série arquetípica e da série social: a universalidade quase folclórica evapora muito do realismo; mas, para compensar, o realismo dá concreção e eficácia aos padrões incaracterísticos. Da tensão entre ambos decorre uma curiosa alternância de erupções do pitoresco e de reduções a modelos socialmente penetrantes, evitando o caráter accessório de anedota, o desmando banal da fantasia e a pretenciosa afetação, que comprometem a maior parte da ficção brasileira daquele tempo.
5. O mundo sem culpa
Diversamente de quase todos os romances brasileiros do século XIX, mesmo os que formam a pequena minoria dos romances cômicos, as Memórias de um sargento de milícias criam um universo que parece liberto do peso do erro e do pecado. Um universo sem culpabilidade e mesmo sem repressão, a não ser a repressão exterior que pesa o tempo todo por meio do Vidigal e cujo desfecho já vimos. O sentimento do homem aparece nele como uma espécie de curiosidade superficial, que põe em movimento o interesse dos personagens uns pelos outros e do autor pelos personagens, formando a trama das relações vividas e descritas. A esta curiosidade corresponde uma visão muito tolerante, quase amena. As pessoas fazem coisas que poderiam ser qualificadas como reprováveis, mas fazem também outras dignas de louvor, que as compensam. E como todos têm defeitos, ninguém merece censura.
A madrinha levanta um falso contra José Manuel, mas para ajudar a causa simpática dos namorados; além disso José Manuel é um patife. A compensação vem com a reação dele por intermédio do Mestre de Reza -, Dom Basílio de fancaria -, que consegue destruir a calúnia. As coisas entram nos eixos, mas nós perguntamos se não teria sido melhor deixar a calúnia de pé...
Como vimos, o Compadre "se arranja" pelo perjúrio. Mas o narrador só conta isto depois que a nossa simpatia já lhe está assegurada pela dedicação que dispensou ao afilhado. Para nós, ele é tão bom que o traço sinistro não pode comprometê-lo. Tanto mais quanto o ouro mal adquirido nada tem de maldito e se torna uma das heranças que vão garantir a prosperidade de Lenardo.
Um dos maiores esforços das sociedades, através da sua organização e das ideologias que a justificam, é estabelecer a existencia objetiva e o valor real de pares antitéticos, entre os quais é preciso escolher, e que significam lícito ou ilícito, verdadeiro ou falso, moral ou imoral, justo ou injusto, esquerda ou direita política e assim por diante. Quanto mais rígida a sociedade, mais definido cada termo e mais apertada a opção. Por isso mesmo desenvolvem-se paralelamente as acomodações de tipo casuístico, que fazem da hipocrisia um pilar da civilização. E uma das grandes funções da literatura satírica, do realismo desmistificador e da análise psicológica é o fato de mostrarem, cada um a seu modo, que os referidos pares são reversíveis, não estanques, e que fora da racionalização ideológica as antinomias convivem num curioso lusco-fusco.
Pelo que vimos, o princípio moral das Memórias parece ser, exatamente como os fatos narrados, uma espécie de balanceio entre o bem e o mal, compensados a cada instante um pelo outro sem jamais aparecerem em estado de inteireza. Decorre a idéia de simetria ou equivalência, que, numa sociedade meio caótica, restabelece incessantemente a posição por assim dizer normal de cada personagem. Os extremos se anulam e a moral dos fatos é tão equilibrada quanto as relações dos homens.
De tudo se desprende um ar de facilidade, uma visão folgada dos costumes, que pode ou não coincidir com o que ocorria "no tempo do Rei", mas que fundamenta a sociedade instituída nas Memórias, como produto de um discernimento coerente do modo de ser dos homens. O remorso não existe, pois a avaliação das ações é feita segundo a sua eficácia. Apenas um personagem de segundo plano, o velho Tenente-Coronel, tem a consciência pesada pelo malfeito de seu filho, o Cadete, em relação à mãe do "memorando"; e esta consciência pesada fica divertida por contraste.
Se assim for, é claro que a repressão moral só pode existir, como ficou dito, fora das consciências. É uma "questão de polícia" e se concentra inteiramente no major Vidigal, cujo deslizamento cômico para as esferas da transgressão acaba, no fim do romance, por baralhar definitivamente a relação dos planos.
Nisto e por tudo isto, as Memórias de um sargento de milícias contrastam com a ficção brasileira do tempo. Uma sociedade jovem, que procura disciplinar a irregularidade da sua seiva para se equiparar às velhas sociedades que lhe servem de modelo, desenvolve normalmente certos mecanismos ideais de contensão, que aparecem em todos os setores. No campo jurídico, normas rígidas e impecavelmente formuladas, criando a aparência e a ilusão de uma ordem regular que não existe e que por isso mesmo constitui o alvo ideal. Em literatura, gosto acentuado pelos símbolos repressivos, que parecem domar a eclosão dos impulsos. É o que vemos, por exemplo, no sentimento de conspurcação do amor, tão freqüente nos ultra-românticos. É o que vemos em Peri, que se coíbe até negar as aspirações que poderiam realizá-lo como ser autônomo, numa renúncia que lhe permite construir em compensação um ser alienado, automático, identificado aos padrões ideais da colonização. N'O Guarani, a força do impulso vital, a naturalidade dos sentimentos, só ocorre como característica dos vilões ou, sublimados, no quadro exuberante da natureza -, isto é, as forças que devem ser dobradas pela civilização e a moral do conquistador, das quais D. Antônio de Mariz é um paradigma e o índio romântico um homólogo ou um aliado. (Lembremos o "índio tocheiro. O índio filho de Maria , afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz", do Manifesto antropófago, de Oswald de Andrade). Repressão mutiladora da personalidade é ainda o que encontramos noutros romances de Alencar, os chamados urbanos, como Lucíola e Senhora, onde a mulher opressa da sociedade patriarcal confere ao enredo uma penumbra de forças recalcadas. Em meio de tudo, a liberdade quase feérica do espaço ficcional de Manuel Antônio, livre de culpabilidade e remorso, de repressão e sanção interiores, colore e mobiliza o firmamento do Romantismo, como os rojões do "Fogo no Campo"ou as baianas dançando nas procissões.
Graças a isto, se diverge do superego habitual de nossa novelística, efetua uma espécie de desmistificação que o aproxima das formas espontâneas de vida scial, articulando-se com elas de modo mais fundo. Façamos um paralelo que talvez ajude.
Na formação histórica dos Estados Unidos houve desde cedo uma presença constritora da lei, religiosa e civil, que plasmou os grupos e os indivíduos, delimitando os comportamentos graças à força punitiva do castigo exterior e do sentimento interior de pecado. Daí uma sociedade moral, que encontra no romance expressões como A Letra escarlate, de Nathanael Hawthorne, e dá lugar a dramas como o das feiticeiras de Salem.

Esse endurecimento do grupo e do indivíduo confere a ambos grande força de identidade e resistência; mas desumaniza as relações com os outros, sobretudo os indivíduos de outros grupos, que não pertencem à mesma lei e, portanto, podem ser manipulados ao bel-prazer. A alienação torna-se ao mesmo tempo marca de reprovação e castigo do réprobo; o duro modelo bíblico do povo eleito, justificando a sua brutalidade com os não-eleitos, os outros, reaparece nessas comunidades de leitores quotidianos da Bíblia. Ordem e liberdade - isto é, policiamentos internos e externos, direito de arbítrio e de ação violenta sobre o estranho -, são formulações desse estado de coisas.

No Brasil, nunca os grupos ou os indivíduos encontraram efetivamente tais formas; nunca tiveram a obsessão da ordem senão como princípio abstrato, nem da liberdade senão como capricho. As formas espontâneas da sociabilidade atuaram com maior desafogo e por isso abrandaram os choques entre a norma e a conduta, tornando menos dramáticos os conflitos de consciência.

As duas situações diversas se ligam ao mecanismo das respectivas sociedades: uma que, sob alegação de enganadora fraternidade, visava a criar e manter um grupo idealmente mono-racial e mono-religioso; outra que incorpora de fato o pluralismo racial e depois religioso à sua natureza mais íntima, a despeito de certas ficções ideológicas postularem inicialmente o contrário. Não querendo constituir um grupo homogêneo e, em consequência, não precisando defendê-lo asperamente, a sociedade brasileira se abriu com maior larguesa à penetraçao dos grupos dominados ou estranhos. E ganhou em flexibilidade o que perdeu em inteireza e coerência.

O sentido profundo das Memórias está ligado ao fato de não se enquadrarem em nenhuma das racionalizações ideológicas reinantes na literatura brasileira de então: indianismo, nacionalismo, grandeza do sofrimento, redenção pela dor, pompa do estilo etc. Na sua estrutura mais íntima e na sua visão latente das coisas, este livro exprime a vasta acomodação geral que dissolve os extremos, tira o significado da lei e da ordem, manifesta a penetração recíproca dos grupos, das idéias, das atitudes mais díspares, criando uma espécie de terra-de-ninguém moral, onde a transgressão é apenas um matiz na gama que vem da norma e vai ao crime. Tudo isso porque, não manifestando estas atitudes ideológicas, o livro de Manuel Antônio é talvez o único em nossa literatura do século XIX que não exprime uma visão de classe dominante.

Este fato é evidenciado pelo seu estilo, que se afasta da linguagem preferida no romance de então, buscando uma tonalidade que se tem chamado de coloquial. Pelo fato de ser um principiante sem compromissos com a literatura estabelecida, além de resguardado pelo anonimato, Manuel Antônio ficou à vontade e aberto para as inspirações do ritmo popular. Esta costela trouxe uma espécie de sabedoria irreverente, que é pré-crítica, mas que, pelo fato de reduzir tudo à amplitude da "natureza humana", se torna afinal mais desmistificadora do que a intenção quase militante de um Alencar -, mareada pelo estilo de classe. Sendo neutro, o estilo encantador de Manuel Antônio fica translúcido e mostra o outro lado de cada coisa, exatamente como o balanceio de certos períodos. "Era a comadre uma mulher baixa, excessivamente gorda, bonachona, ingênua ou tola até um certo ponto, e finória até outro". "O velho tenente-coronel, apesar de virtuoso e bom, não deixava de ter na consciência um sofrível par de pecados". Daí a equivalência dos opostos e a anulação do bem e do mal, num discurso desprovido de maneirismo. Mesmo em livro tão voluntariamente crítico e social quanto Senhora, o estilo de Alencar acaba fechando a porta ao senso da realidade, porque tende à linguagem convencional de um grupo restrito, comprometido com uma certa visão do mundo; e ao fazê-lo, sofre o peso da sua data, fica preso demais às contingências do momento e da camada social, impedindo que os fatos descritos adquiram generalidade bastante para se tornarem convincentes. Já a linguagem de Manuel Antônio, desvinculada da moda, torna amplos, significativos e exemplares os detalhes da realidade presente, porque os mergulha no fluido do populário -, que tende a matar lugar e tempo, pondo os objetos que toca além da fronteira dos grupos. É pois no plano do estilo que se entende bem o desvinculamento das Memórias em relação à ideologia das classes dominantes do seu tempo -, tão presente na retórica liberal e no estilo florido dos "beletristas". Trata-se de uma libertação, que funciona como se a neutralidade moral correspondesse a uma neutralidade social, misturando as pretensões das ideologias no balaio da irreverência popularesca.

Esta se articula com uma atitude mais ampla de tolerância corrosiva, muito brasileira, que pressupõe uma realidade válida para lá, mas também para cá da norma e da lei, manifestando-se por vezes no plano da literatura sob a forma de piada devastadora, que tem certa nostalgia indeterminada de valores mais lídimos, enquanto agride o que, sendo hirto e cristalizado, ameaça a labilidade, que é uma das dimensões fecundas do nosso universo cultural.

Essa comicidade foge às esferas sancionadas da norma burguesa e vai encontrar a irreverência e a amoralidade de certas expressões populares. Ela se manifesta em Pedro Malasarte no nível folclórico e encontra em Gregório de Matos expressões rutilantes, que reaparecem de modo periódico, até alcançar no Modernismo as suas expressões máximas, com Macunaíma e Serafim Ponte Grande. Ela amaina as quinas e dá lugar a toda a sorte de acomodações (ou negações), que por vezes nos fazem parecer inferiores ante uma visão estupidamente nutrida de valores puritanos, como a das sociedades capitalistas; mas que facilitará a nossa inserção num mundo eventualmente aberto.

Com muito menos virulência e estilização que os dois livros citados, o de Manuel Antônio pertence a um entroncamento dessa linha, que tem várias modalidades. Nem é de espantar que só depois do Modernismo encontrasse finalmente a glória e o favor dos leitores, com um ritmo de edições que nos últimos vinte e cinco anos ultrapassa uma por ano, em contraste com o anterior, de uma cada oito anos.

Na limpidez transparente do seu universo sem culpa, entrevemos o contorno de uma terra sem males definitivos ou irremediáveis, regida por uma encantadora neutralidade moral. Lá não se trabalha, não se passa necessidade, tudo se remedeia. Na sociedade parasitária e indolente, que era a dos homens livres do Brasil de então, haveria muito disto, graças à brutalidade do trabalho escravo, que o autor elide junto com outras formas de violência. Mas como ele visa ao tipo e ao paradigma, nós vislumbramos através das situações sociais concretas uma espécie de mundo arquetípico da lenda, onde o realismo é contrabalançado por elementos brandamente fabulosos: nascimento aventuroso, numes tutelares, dragões, escamoteação da ordem econômica, inviabilidade da cronologia, ilogicidade das relações. Por isso, tomemos com reserva a idéia de que as Memórias são um panorama documentário do Brasil joanino; e depois de ter surgido que são antes a sua anatomia espectral, muito mais totalizadora, não pensemos nada e deixemo-nos embalar por essa fábula realista composta em tempo de allegro vivace.
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(1) José Veríssimo, "Um velho romance brasileiro", Estudos brasileiros, 2ª série, Rio de Janeiro, Laemmert, 1894, pp. 107-124; Mário de Andrade, "Introdução", Manuel Antônio de Almeida, Memórias de um sargento de milícias. Bibliotecas de literatura brasileira, I, São Paulo, Martins, 1941, pp. 5-19; Darcy Damasceno, "A afetividade lingüística nas Memórias de um sargento de milícias", Revista brasileira de filologia, vol. 2, tomo II, Dezembro 1956, pp. 155-177, especialmente pp. 155-177, especialmente pp. 156-158 (a citação é da p. 156).
(2) Josué Montello, "Um precursor: Manuel Antônio de Almeida", A literatura no Brasil, Direção de Afrânio Coutinho, vol. II, Rio de Janeiro, Editorial Sul Americana S.A., 1955, pp. 37-45.
(3) Frank Wadleigh Chandler, La novela picaresca en España, Trad. do inglês por P.A. Martín Robles, Madrid, La España Moderna, s.d. (Trata-se de apenas uma parte da obra original de Chandler, The Literature of Roguery, 3 vols., New York, Houghton Miffin, 1907). Ver também Angel Valbuena y Prat, "Estudio preliminar", La novela picaresca española, 4ª ed., Madrid, Aguilar, 1942, pp. 11-79. Trata-se de uma edição dos principais romances picarescos espanhóis utilizada neste ensaio.
(4) "É desse modo que Manuel Antônio de Almeida caracteriza o personagem Leonardo, que resulta num herói sem nenhum caráter, ou melhor, que apresenta os traços fundamentais do estereótipo do brasileiro. Manuel Antônio de Almeida é o primeiro a fixar em literatura o caráter nacional brasileiro, tal como terá longa vida em nossas letras (...) Creio que se pode saudar em Leonardo o ancestral de Macunaíma." Walnice Nogueira Galvão, "No tempo do rei", in Saco de gatos. Ensaios críticos, São Paulo, Duas Cidades, 1976, p. 32. Este belo ensaio, um dos mais penetrantes sobre o nosso autor, saiu inicialmente com o título "Manuel Antônio de Almeida" no "Suplemento Literário" de O Estado de S. Paulo, 17.3.1962.
(5) Marques Rebelo, Vida e obra de Manuel Antônio de Almeida, 2ª ed., São Paulo, Martins, 1963, pp. 38-39 e 42.
(6) Alan Carey Taylor, "Balzac, Manoel Antonio de Almeida et les débuts du réalisme au Brésil", resumo de comunicação, Le réel dans la littérature et le langage, Actes du Xe. Congrès de la Fédération des Langues et Littératures Modernes, publiés par Paul Vernois, Paris, Klincksieck, 1967, pp. 202-203.
(7) Herman Lima, História da caricatura no Brasil, 4 vols., Rio de Janeiro, José Olympio, 1963, vol. I, pp. 70-85.
(8) Astrojildo Pereira, "Romancistas da cidade: Macedo, Manuel Antônio e Lima Barreto", O romance brasileiro (De 1752 a 1930), Coordenação etc. de Aurélio Buarque de Holanda, Rio de Janeiro, O Cruzeiro, 1952, pp. 36-73. Ver p. 40.
(9) Marques Rebelo, ob.cit., pp. 40-41.
(10) T.von Leithold e L. von Rango. O Rio de Janeiro visto por dois prussianos em 1819. Trad. e anotações de Joaquim de Sousa Leão Filho, São Paulo, Editora Nacional, 1966, p. 166.
(11) C. Schlichthorst, O Rio de Janeiro como é. 1824-1826 (Huma vez e nunca mais) etc. Trad. de Emy Dodt e Gustavo Barroso, Rio de Janeiro, Getúlio Costa, s.d., pp. 77-80.


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"Dialética da Malandragem (caracterização das Memórias de um sargento de milícias)" in: Revista do Instituto de estudos brasileiros, nº 8, São Paulo, USP, 1970, pp. 67-89.